quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Destroços...


Em Bissau, onde o Geba encontra o mar, está um barco encalhado em frente a um dos poucos espaços onde se pode tomar uma cerveja fresca a ver o estuário. Uma realidade liquida emoldurada por mangais e por uma cidade que parou num tempo que não é cronológico. 
Há uma nostalgia nos barcos encalhados e nas cidades deste tipo que nos abrem portas para desconhecidas dimensões. Foco-me nos barcos e neste em especial, deixado apodrecer num porto sem cais,fixo, ancorado... preso à memória de viagens que não mais se poderão fazer. À volta dele o movimento continua. Agora as canoas que ali atracam e por ali navegam têm de se desviar. As pequenas canoas de madeira, na maré cheia circundam o barco para chegarem a terra firme. Tanto se apoiam nele para melhor posicionarem a proa como há alturas em que batem nele, e a pancada seca ecoa num casco metálico e oco como frágeis baquetas num balafom, se alguma vez pudesse ser feito de metal.
As correntes e o movimento das gentes continuam inalterados. As pessoas partem e chegam a este porto com as mesmas certezas e com as inseguranças de sempre. As ancoras são lançadas e levantadas com a cadencia e a sabedoria dos mestres. Acredito que com o tempo a carcaça ferrugenta deixe até de ser vista pela maior parte dos marinheiros os dos passageiros.
Será uma ruína a ser comida pelo próprio tempo, pela ferrugem, pelas ondas ou pelo vento, e enquanto isso, continua a apoiar e atrapalhar os navegantes, caminhando estaticamente para invisibilidade e para a completa integração na paisagem tal como acontece com os destroços que nos habitam a alma.


PS
A propósito da partilha com a minha querida Elisabete. Obrigada pela generosidade e acolhimento.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

De piano a fortissimo, em V...

O espectáculo que Mónica Calle apresentou ontem no Lux foi para mim a materialização da insistência. Insistência não será sinónimo de ostinato?
Um bando de mulheres voando sobre o Tejo na certeza que em bando se atravessam continentes. São mulheres instrumento, são mulheres corpo, mulheres ritmo, mulheres horizonte, num plural que não lhes tira singularidade.
São os gestos repetidos que tiram da uva o sumo que depois de incubar será vinho.
Ver Ensaio para uma Cartografia com o Tejo de fundo, com a lua cheia, os barcos a deslizar nas águas, os aviões a seguirem para sul, os comboios a travarem na estação, é uma experiência para os sentidos. Não é preciso cenografia, porque o mundo, tal como a vida, no-la oferece generoso e realista.
É preciso afinar, é preciso que os metais, as madeiras, as cordas, cheguem à nota e ao tempo... E a verdade é que não se consegue fazer isso sem maestro como não se consegue voar em V sem aquele que guia.
Sozinhos é um esforço imenso, é a descoordenação, um ir para trás e para a frente sem destino.
A Mónica falou da unidade, da cooperação, da presença, do esforço, da sintonia. Falou de estereótipos e do essencial. 

Vi, naquele espaço a minha nova caixa de lápis a dançar, os lápis cor de pele que a Brum trouxe de presente, dançaram à minha frente, só faltava um... Talvez esse um fosse eu, fosse cada um dos espectadores que individualmente completaria a caixa de doze.
A dúzia, o bando... Seremos dúzias de lápis encaixados que deixamos marcas de pele quando nós é permitido riscar. Só assim nos cumprimos e ao cumprir "desfazemos"... Só arredondando a ponta em sucessivos "afiamentos ou afinamentos" podemos fazer parte de um desenho maior.
Foi tão bom ir com uma amiga, que os espectáculos da Mónica me ofereceram, foi tão bom rever uma amiga antiga, que passados longínquos não apagaram. Este é o meu sentido de bando. Um sentido paradoxalmente diferente do dos pássaros e até das orquestras, porque neste caso não há tempo nem espaço... Voamos juntos de outra maneira. 
Também eu já experimentei participar em ensaios de orquestra, desejei dançar em pontas e aprendi que só despida me é possível o acesso ao essencial, afinal a arte só nos lembra o que já conhecemos... 
Este ensaio lembrou-me isso tudo e o gosto que tenho por mapas, globos e pela representação da imensidão... Obrigada Mónica pela generosidade da reflexão, obrigada mulheres pela generosidade da partilha, em especial, Maria João pela presença, Silvia pelo ritmo, Brum pelas cores... 



Ler: https://agatachristie.blogs.sapo.pt/tentar-falhar-superar-451884
...e rir porque de facto voamos em bando :-D

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Diversidade...

Crescemos com a ideia de que Espanha se define com um barulhento OLÉ, ao som do flamengo, vistosas sevilhanas,  garridas (sangrentas) touradas... Quando muito para os que fazem o Caminho de Santiago existe um território à parte e um povo irmão que são os Galegos. Uma ideia redutora para um país com 17 comunidades autónomas (mais duas cidades autónomas) e uma diversidade surpreendente. O País Basco é só mais um desses territórios muito especiais. Aqui não são só os narizes que são diferentes!
Talvez não sejam tão simpáticos e prestáveis como crescemos a pensar que são os Portugueses (outra ideia feita). Por exemplo, quando pedes informação de lugares a visitar nas poucas horas que vais estar na cidade, podem dizer a que horas abrem os museus mas não te dizem que naquele dia estão fechados porque é dia de festa, ou não fazem o mínimo esforço para perceber o teu "castelhês". Ainda assim ficam desarmados se sorris e acolhem muito bem quem vem por bem.
Claramente Eskadi está mais perto do céu, o vento é doce e as nuvens quase se podem tocar, o céu é emoldurado por montanhas e o vegetação refresca a alma. Os pequenos "pueblos" são mesmo pequenos e sólidos, como nos habituámos a imaginar os Bascos. Normalmente há uma igreja alta de pedra e as casas, também de pedra, transmitem segurança e estabilidade. É terra de gente forte e trabalhadora, pois os campos estão lavrados e cuidados. As tapas ou os pinchos (pintxos em Eskadi) são, além de bonitos, deliciosos. Por isso não sentes falta de pastelarias nem de sandes de queijo. Os menus têm dois pratos e muitos cardápios dispensam o preço. 
Come-se a outra hora, dorme-se a outra hora... Eskadi um sítio a voltar, sempre!


terça-feira, 3 de setembro de 2019

Interior...

A parte de trás do meu prédio dá para o interior de quarteirão onde confluí a parte de trás dos prédios de quatro ruas. São as traseiras de uns quinze edifícios todos com mais de quatro andares. A verdade é que são estruturas antigas que albergam apartamentos espaçosos e com grandes janelas, na sua maioria iluminando cozinhas.
Da minha janela vejo quem separa a roupa por cores, e detenho-me, muitas vezes, na forma como se estendem lençóis, cuecas ou camisas...
São preciosos estes interiores onde se expõem ou secam sem medos (ou invasões) outros interiores.
Tenho uma vizinha que usa sempre chapéu de sol quando vem à janela estender a roupa que lava à mão. Imagino que é à mão porque pinga muito e é sempre em pouca quantidade. Duas ou três peças e um chapéu dizem-me tanta coisa.
Tudo o que vejo é imaginação, faço histórias. Por exemplo o vizinho da janela em frente terminou há uns meses a relação com a namorada. Nunca mais apareceu roupa de mulher naquele estendal. Tive pena pelos dois. Ele será arquitecto e trabalha a maior parte do tempo a partir de casa, ela chegava cedo e jantavam juntos. Também deixou de ter o aquário de luz mais azulada que dava um ambiente cinematográfico à sala. Ao lado dele mora um casal de velhotes muito queridos. É sempre o senhor que estende a roupa debruçado sobre as guardas de ferro verde que o separa do estendal. Usam robe em casa e andam muito devagar.
Um apartamento deve ter algo precioso quando descubro que tem grandes de segurança, mesmo que discretas, nas janelas depois das marquises. Há um par deles nestas condições. Fico a imaginar-lhes os recheios com os quadros de pintores famosos nas paredes, esculturas em mísulas ou cerâmicas protegidas por redomas.
Neste interior crescem buganvílias cor de rosa e uma borracheira fantástica. Há uma chaminé em tijolo de burro mais alta que todos os prédios e os pássaros são muitos, com predominância para os melros.
Há vizinhos que raramente abrem as janelas. Há quem só venha à janela ou à varanda fumar ganzas. No terraço de baixo mora um grupo de jovens estrangeiros, um tipo de Erasmus que eu nunca percebi se trabalham, estudam ou estão de férias. Uma coisa é certa, as festas são fantásticas e o grupo não tem sempre a mesma composição.
Não há muitos bebés, nem muitas viúvas de preto neste segmento de cidade. Também não há militares, jogadores de futebol, saris ou tapetes de oração a precisarem de manutenção. Quem me conta isto tudo são os estendais.
Algumas janelas nunca se abrem. Uma mão cheia de apartamentos está em obras e um dos prédios está a renovar o telhado. Nesta altura do ano há mesas de jardim nos terraços e jantares ao final do dia.
A roupa essa, continua a secar ao vento e a falar-me de quem não conheço. A
maior parte das pessoas separa a trapagem em escura, branca e colorida. Eu, que sou a favor de todas as misturas, mestiçagens e cruzamentos, gosto desta vizinhança que separa a roupa por cores. É o único sítio onde me faz sentido um rigoroso critério na separação. 

sábado, 3 de agosto de 2019

Insurgência...

Fui ouvir Pilar Del Rio à Casa Ninja em Lisboa a propósito da Insurgência Feminista na América Latina. Fantástico conhecer mulheres controversas como as mexicanas Malinche (1502-1529) ou Soror Juana Inês de la Cruz (1648-1695) ou o movimento das Mães da Praça de Maio na Argentina (a partir de 1977), entre muitos outros exemplos de vidas e de lutas que na maior parte das vezes não se chamava feminismo mas que era sempre uma luta pela justiça.
O discurso fez-me pensar, afinal é para isso que servem as "charlas".
Falamos de machismo e feminismo e tantas vezes reduzimos ou confundimos a questões de género.
Entendo que o machismo ganhou o espaço que ganhou por causa de homens e mulheres. Não é um absoluto de género, a prova é que muitas das atrocidades causadas às mulheres são perpetradas pelas próprias mulheres na educação diferenciada que dão aos seus filhos (uma para meninos e outra para meninas) ou na mutilação genital feminina, só para dar dois exemplos, que a lista é grande e difere de região para região.
Enquanto nós, mulheres, não assumirmos a responsabilidade na edificação e perpetuação deste injusto mundo machista não estaremos verdadeiramente ao serviço do feminismo. E por causa dos tantos anos e hábitos sabemos todas que é uma tarefa árdua. 
Por outro lado, o feminismo não é uma "luta" de mulheres. Para mim, o "verdadeiro feminismo" não é o radical como diz a valente, divertida e provocadora Barbijaputa, mas sim aquele que une mulheres e homens num mesmo ideal. Sem isto, estaremos só a falar de poder.
Sem os homens não será possível edificar uma sociedade verdadeiramente feminista como não foi possível fazê-la machista sem as mulheres. 
E nunca é de mais lembrar a diferença entre os conceitos, o machismo defende que os homens são superiores às mulheres, o feminismo defende a igualdade de direitos, liberdade e respeito entre todos.
O primeiro é exclusivo o segundo é inclusivo e nesta "inclusividade" abre-se um mundo inteiro de possibilidade e abertura aos outros e às suas diferenças, de flexibilidade, de respeito e de liberdade com o qual me identifico plenamente. Nos discursos feministas, falta algumas vezes este lado tão feminino que felizmente encontro em tantos homens e mulheres "normais", que o praticam no ordinário dos dias.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Paragens...

Às três da manhã descanso numa paragem de autocarro, não esperando o dito, mas aguardando que as forças voltem para me por ao caminho. 
Às vezes faz sentido parecer que esperamos uma coisa quando de facto sabemos que o caminho depende de nós e nós o vamos fazer segundo os nossos tempos e vontades (ou será melhor dizer possibilidades). 
A este hora o relógio diz-me que já tenho cumprido o objectivo diário de passos, já ri desmedidamente da vida como se a vida não tivesse medida, já olhei o rio e invoquei todos aqueles que nele se aventuraram ao longo dos séculos incluindo os meus avós e os tios, que sem nunca o terem visto antes, aceitaram entrar num barco em direção a uma vida melhor. Seja África ou Américas o destino entre os anos quarenta e sessenta do século passado era o mesmo... Hoje também.
O rio e o mar que se encontram por aqui confirmam-me este "navegar à bolina" em que tantas vezes me sinto. 
Não espero o autocarro, apenas vejo quem passa... E sei que o tempo é meu. Posso sair daqui quando quiser, como quiser. Posso ficar aqui a noite inteira. Basta chegar quem não me interessa e identificar isso pela conversa, que eu, sem levantar o olhar dos meus pensamentos, ergo-me e sigo com foco o meu caminho.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Tambores...


Estava numa conversa sobre as religiões de matriz africana, em especial do povo Bantu com origem na zona do Congo se desenvolveram, por exemplo em Cuba concretamente para a religião Palo Monte.
Uma conversa em Portugal, no centro de Lisboa, com cubanos, espanhóis, brasileiros, angolanos, guineenses, moçambicanos e curiosamente poucos portugueses. Porque é fundamental reconhecer e respeitar esta diversidade cultural e religiosa para acabar com todo o tipo de racismo religioso, linguistico ou musical, rapidamente.

Um dos músicos que lidera o encontro, começa por dizer que as religiões são criadas pelos homens, em função do seu "ecossistema", digo eu. Esta ideia faz todo o sentido para mim que sou religiosa e espiritual. Faço esta manifestação de interesse para que fique claro o ponto de vista de alguém que professa uma religião que é constituída por homens e mulheres profundamente machistas. 

Comungo a ideia de que a nossa mundividência determina a forma como vemos a materialidade e a imaterialidade das coisas e como construímos os nossos sistemas de crença ou de cepticismo.

A conversa decorreu em redor da música com percussionistas e cantores a demonstrarem de forma asséptica (porque não estávamos numa celebração) efeitos quase hipnóticos conseguidos no seu expoente máximo com a ajuda de ritmo, som, movimento, álcool e charutos. Percebo este universo de acesso ao transcendente, aos mortos e a nós próprios. 

Neste contexto liderado por homens surge a pergunta se as mulheres podiam tocar tambor nas cerimónias. A resposta é interessante, e começa por explicar que os tambores consagrados são habitados por um espírito que fala através do som que emite. O tambor toca porque o espírito fala e esta ideia de um som vivo, habitado que convive ou comunica com diferentes dimensões também faz sentido no meu cristianismo ocidental. Na sua essência é isto que procuro na música e é também isto que encontro nos diferentes géneros de que gosto. O acesso a um transcende sagrado ou profano conforme os "terreiros"...

A ideia romântica do tambor falar não faz confusão a quem estudou, em pequena, percussão ou fez há uns tempos um workshop com o método Molik.
O que eu não esta preparada era para ouvir a justificação que se seguiu, dizia o músico, que o espírito que habita o tambor não fala quando é uma mulher a percutir a pele. Pode até haver som mas não há fala. 
E não fala porquê? Ainda se aflorou o facto de as mulheres serem mais pequenas e mais fracas, mas alguém deve ter olhado para o lado e visto que a mulher que tinha juntado aquela gente ali era mais alta que os músicos que agora falavam e a justificação morreu também por falta de força. Ficou-se na razão das mulheres terem menstruação. 
Aquilo que permite a vida, a propagação da espécie... O sangue que todos os meses atesta a saúde sexual e reprodutiva ou o ritmo biológico da mulher deixa o espírito mudo.
Ora, se todas as religiões são feitas por homens e mulheres, já era tempo de eles dizerem ao espírito que a menstruação é uma coisa boa e que apenas acontece normalmente entre 30 a 40 dias por ano por isso podemos dizer que a maior parte do ano a mulher não tem o "corpo aberto". Em último recurso podemos dizer também ao espírito que, se a mulher tocar com o "corpo aberto", toda a comunidade se pode juntar para a proteger das forças do desconhecido e com isto criar coesão e respeito pela condição feminina e pelas mulheres que querem tocar.
O outro ponto é pensar que o espírito pode ser Mulher e que por isso percebe e apoia, esta sua "irmã" da terra, cíclica e musical.
Esta conversa, fez-me pensar, (sem estudos em antropologia nem no estudo das religiões e por isso consciente as minhas limitações académicas em relação ao tema), que as religiões tradicionais, que supostamente estão mais perto das pessoas (e são feitas por elas como todas as outras) deviam evoluir mais rapidamente e ser cada dia mais respeitadoras dos valores humanistas e por isso, no meu entender de justiça, mais justas. 
Imaginando que eu era cubana: Que o espírito não fale comigo que a custo próprio percebi que a percussão não é a minha praia, eu entendo, mas que não fale comigo porque sou mulher e menstruo, custa-me a aceitar mesmo sabendo que há dias em que as "regras" me exigem recolhimento e um saco de água quente, ou que a "lua" me baralha as ideias e me pede tudo menos ritmos e conversas. 


O meu desejo é que os tambores falem com todos o que desejam ser um bom veículo dessa comunicação. Sejam mulheres, homossexuais, gordos ou magros, crianças ou velhos. Este desejo não é de igualdade mas de justiça. Nem todos têm talento, nem todos tocam bem ou nem todos sabem escutar ou têm acesso ao desconhecido, porque somos todos diferentes. Que estas diferenças não nos encaixem em dogmas que nos roubam liberdade ou tão simplesmente a possibilidade de sermos cada dia mais conscientes, mais livres e mais felizes em sociedade e em unidade com tudo, o visível e o invisível.
Parece-me que esta é a forma de sermos a cada dia, mais fortes e mais parecidos com a Divindade.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Interações...


É tão bom chegar ao final do dia com a sensação que tudo está bem. Desejo que as viagens que faço sejam sempre de interação... 
Relaciono-me com as pessoas com quem me cruzo nos muitos caminhos que calcorreio a pé, sorrio a desconhecidos, cumprimento os rostos habituais e às vezes fico alguns minutos à conversa. Para a maior parte não tenho nome, para alguns sou princesa, menina ou vizinha, para menos sou a Cláudia... Para com todos, mesmo aqueles que não reconheço de lado nenhum cultivo o desejo de abrandar, cruzo o olhar ou sorrio seguindo caminho. Há umas semanas chamava-me uma velhinha do alto do seu segundo andar, com audíveis problemas de fala, passados uns minutos de uma conversa de surdos lá percebi que queria saber o resultado do jogo do Benfica. Saquei do telefone e deixei a senhora feliz com a sua equipa a ganhar aos 68 minutos, não me lembro do resultado do jogo mas lembro-me dos minutos e da alegria da velhota.
Que me perdoem as divindades, mas só não me param de bom grado as testemunhas de Jeová e os peditórios para os bombeiros... Enfim, há sempre muito caminho a fazer nas intervenções sociais. Lembrei-me disso por causa dos últimos espectáculos que vi, por causa das tão na moda "redes sociais" e por causa dos sites de encontros. Os três espectáculos nas últimas 36 horas ressoam em mim por diferentes motivos, um porque não gostei nada, outro porque o seu lado leve surpreende no tratamento de temas complexos e outro porque foi de uma profundidade, poesia e beleza que ainda trabalha dentro de mim. É para isto que a arte também serve, para me dar consciência do ordinário dos dias, sentido aos passos e horizonte aos voos.

Feliz dia de São João! Este Baptista que intuiu o mistério trinitário e não se cansou de pregar no deserto... Um louco que nos inspira a sair da normalidade da indiferença e a olhar os outros com generosidade e alegria anunciando e construindo novos caminhos. 


domingo, 12 de maio de 2019

Big Bang...

Esta semana assisti a apresentação de um trabalho de uma amiga, que para lá disso é uma grande bailarina. A Valentina inventou um novo big bang. Alerto já que não é esta a história nem são estes os passos experimentais e teóricos que suportam dois anos de trabalho e de investigação em torno da forma e do modo, de "Altrove",  mas é esse trabalho que me leva a construir uma narrativa só minha. Assim, posso afirmar, que esta quinta feira vi uma novíssima e surpreendente interpretação da criação do mundo.
Um mundo que nasce de um plano bidimensional, de um desenho... Um mundo que é na sua origem um planisfério onde as cores e as texturas se tocam lado a lado. Pela intervenção da vida, no caso, da Mulher ou da humanidade (porque humanidade também se pode escrever com M grande), a criação transforma-se, envolve-se, mistura-se, confunde-se, toca-se sempre, amarrota-se, espreme-se, aperta-se, centrifuga na busca de uma forma, de um centro. Encontra esse centro numa configuração redonda que pode ser um globo, um vulcão... E este caminho de convergência, que é feito sem roupa e com roupa, tem nas roupas uma metáfora lindíssima. A música tece paisagens que me lembram o quão difícil e fácil é este encontro, este toque, este movimento, não que não nos seja natural, antes pelo contrário. Como num parto, a força, a respiração, a dor e algum tipo de violência faz nascer a criação, a criatura, a vida ou apenas uma nova forma de ser, extensível a quem pare e a quem é parido.
Nos movimentos de encontro como nos movimentos de criação ninguém fica indiferente e ninguém fica igual, talvez possa ser esta a minha ingénua definição de arte.
Voltando linóleo branco, pretexto disto tudo, penso na forma como crescemos e como construímos ou vemos a realidade, como imitamos modelos, como nos tornamos modelos, como nos relacionamos com formas inanimadas e como é clara e nem sempre consciente, a luta entre ser e não ser vida, ser e não ser carne, ser e não ser.
Obrigada Valentina por estes anos de trabalho e por este processo que continua em curso e que acredito continuará a possibilitar muitas leituras e magnificas relações como as que experimentámos naquela sala, naquela reverberação de som e naquela luz.
Brindemos com vinho feito em talhas de barro, comamos pão, azeitonas, frutas e bolinhas dos Açores, afinal o mundo é mesmo redondo e nós continuamos a alimentar-nos da terra e da generosidade uns dos outros. 


"Altrove" | Estudo para corpos dispersos 
Valentina Parravicini | dança
Marcos Aganju Oju | sonoplastia
Sofia Ó | colaboração
Cristina Vilhena | produção
No 
c.e.m - centro em movimento dia 10 de maio de 2019


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Histórias e caminhos...

Na rua cruzo-me inconscientemente com histórias. Histórias que caminham, incógnitas, lado a lado com a minha, rostos e formas de andar aos quais imagino enredos, amores, superações e sonhos.
Depois descrevo-as nas conversas com os mais íntimos e só volto a mim quando a pergunta surge: isso é verdade? Não sei, nem sei o nome daqueles a quem construo passados, presentes ou futuros... Pouco interessa se a história é de facto assim, o que interessa é onde me levam os olhares e os passos daqueles com quem me cruzo, a quem sorrio e a quem desejo que sejam felizes.
A realidade, essa, tem nome e não se compadece com distrações. É preciso estar atenta para me lembrar que o sr. António começou a vender nas feiras há uns cinco anos depois de ficar desempregado, nunca antes se imaginou nesta vida e hoje não se imagina noutra. É um vício isto de comprar e vender... Ele lembrar-se sempre do objecto que eu peguei na última vez que conversámos. Quero lembrar de lhe perguntar, para a semana, como correu a viagem até ao Alentejo em que a filha se vai estrear na condução. Tirou a carta por estes tempos mas ainda não se atreve a acelerar pelas ruas de Lisboa. Por isso o Sr. António continua a ir buscar todos os dias a sua menina ao trabalho e não esconde o entusiasmo de ser conduzido por ela até à casa de família.
Também fiquei entusiasmada com o pretexto que o vai fazer não montar a banca no sábado, e para a semana vou saber onde os levou esta nova aventura automobilística. Isto se os motoristas de matérias perigosas não me atrapalharem as histórias que não invento. 

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Ana Teresa mandou uma mensagem...

Este foi um texto que eu li esta semana aos explicandos da mãe de uma amiga, eles têm entre 13 e 14 anos e vão ter de escolher a área de estudo no ensino secundário. 

Escrevo para a Carolina, para a Marta, para os dois Vascos e para o João,
Uma amiga que encontrei num dos muitos caminhos que percorri, e que já não via há anos, quase tantos anos como aqueles que tem a vossa memória, mandou-me uma mensagem pelo whatsapp, para um número de telefone que é muito mais velho que vocês. A mensagem era o convite para uma conversa com os cinco! 
Eu e ela nunca mais nos vimos, e apenas vamos mantendo o contacto fugaz e filtrado, das redes sociais, que tem como base os sorrisos e as conversas que trocámos nos meses que fizemos caminho juntas.
Queria a Ana Teresa, que eu partilhasse o meu percurso em 20 minutos. Fiquem a saber que uma das coisas que define uma amizade é a disponibilidade e eu arranjei disponibilidade hoje para mudar o contador da electricidade lá de casa e vir falar convosco com muita energia!
Vocês não mais se vão lembrar desta conversa, porque vão ter na vida muitas conversas interessantes que vão guardar nos sítios onde se guardam as coisas importantes, e esta não é de todo. Eu apenas gostaria de deixar lá duas palavras. Que quando saíssem daqui ou quando a vida vos colocar perguntas difíceis, pudessem lembrar-se destas duas palavras! Imaginam que palavras são essas? 

Uma é flexibilidade e outra é atenção.
Vou-vos contar resumidamente parte da minha história e vão ver que estas são duas das palavras que estão na base de tudo mesmo sem eu saber e são aquelas que eu desejo também nunca me esquecer.
Quando tinha a vossa idade não sabia em que queria trabalhar, "o que queria ser" como nos fazem acreditar quando somos pequenos, iludindo-nos que somos os que fazemos, e na verdade não somos, o que fazemos está sim, ao serviço do que somos! Somos muito para lá do que fazemos.
No sétimo ano decidi que queria ir para artes e esse agrupamento só tinha uma turma numa outra escola e era concorrido entrar na dita turma, na altura davam preferência às médias aos alunos da escola, então, com a ajuda da minha mãe, decidi mudar de escola no 9.º e entrar naquela onde no 10.º ano havia artes, nesse ano (no nono) a única vaga disponível era em desporto e por isso fiz o novo ano na turma de desporto (e foi bem diferente do que eu estava habituada), na esperança de isso me dar acesso no 10.º à área que me fizera mudar de escola. Assim aconteceu e eu terminei o secundário na área das artes, com boas notas e o corpo tonificado.
Depois estava um pouco perdida e quando estamos perdidos fazemos coisas malucas e eu concorri à Escola Superior de Teatro e Cinema para formação de actores, sem nenhuma base de representação e uma timidez do tamanho do mundo! Claro que não entrei e que foi muito penoso este processo. Mas foi ele que me mostrou que havia mais cursos naquela escola e no ano seguinte concorri para Realização Plástica do Espectáculo. Fiquei assim um ano a trabalhar em muitos biscates, a inserir inquéritos, a tomar conta de crianças ou a trabalhar num atelier de restauro. No ano seguinte, quando concorri ao "conservatório de teatro" (como os antigos chamavam), num concurso de admissão com provas na escola, concorri também à escola de restauro com provas também na escola e ao concurso geral de acesso ao ensino superior para cerâmica na ESAD das Caldas da Rainha. Três caminhos completamente diferentes. Sabem uma coisa? Entrei nas três escolas, nos três cursos e com boas médias! Tinha de escolher um. Escolhi a Escola Superior de Teatro e Cinema. E sou muito grata e feliz pelo que aprendi lá, mesmo não seguindo a carreira. Criei o meu próprio emprego em sociedade com outra pessoa e comecei a trabalhar em publicidade. Fiz muitas coisas diferentes na agência de publicidade e sonhei com outros, novos negócios e formas de trabalho colaborativo.
E como nada é definitivo 15 anos depois comecei uma nova carreira sozinha, voltei à escola, aprendo e faço coisas novas todos os dias.  Hoje não trabalho em teatro, nem em agências de publicidade, trabalho em comunicação para o desenvolvimento e em produção cultural. E sabem que mais? Acredito que os empregos onde vocês vão trabalhar ainda nem têm nome, ainda estão por criar, como acredito que eu vou fazer coisas que hoje nem imagino! E no intervalo tenho experiência de vários desportos, vender aspiradores, fazer censos, servir casamentos, baptizados e servir à mesa, mesmo se ainda preciso de aperfeiçoar a minha técnica de fazer cappuccinos hehheh!
Por isso miúdos bonitos, escolham uma área de que gostem, não se preocupem se é um curso profissional ou outro ramo de ensino, preocupem-se em ter prazer em aprender, e procurem divertir-se com isso! Tenham curiosidade, um pouco de disciplina e ocupem algumas das horas que passam a tentar passar de nível nas jogos que eu já não sei o nome, a fazer algum tipo de voluntariado, ou biscate, ou trabalho, nos bombeiros, no canil, na colectividade, no lar de uma tia mais velha, na igreja ou no mecânico da rua (para quem gosta de carros), foi com este pretexto que eu fui pedir trabalho ao atelier de restauro que falei em cima, e onde aprendi muitas coisas, ganhei uns trocos, fiz bons amigos e mantenho o gosto pela "bricolage".
Acima de tudo, mantenham tatuadas estas duas palavras na vossa memória e sejam alegres e criativos! Leiam mais, vejam programas de natureza, estejam abertos a mudar de opinião, a mudar padrões de consumo, a comer menos carne, a sorrir mais, a fazer coisas diferentes todos os dias, a aprender todos os dias!
Quais foram as duas palavras que vos falei em cima?
Flexibilidade e atenção!
Desejo-vos o melhor e que não tenham medo, sejam inteligentes e escolham um curso que gostem e que vos estimule a conhecer mais, a saber mais do mundo... Invistam tempo em saber mais de vocês próprios e invistam nas amizades. Garanto-vos que as amizades que fazemos na escola são muito mais importantes do possam imaginar. Assim, acredito que daqui a trinta anos, um amigo que já não veem há muito, vos mande uma mensagem e vos convide para contarem a vossa história a meninos com a idade que vocês têm hoje! Obrigada por fazerem parte deste futuro bonito que todos desejamos construir, a vossa felicidade é fundamental para ele. Boa sorte, bom caminho!

Sugestões de leitura para os próximos dias:


domingo, 24 de março de 2019

O meu tio e o ciclone...


Hoje o meu tio mais novo faz anos, faria hoje a festa dos 52 de vida, se fosse vivo, assim fazemos a festa dos 52 anos de nascimento, com a mesma importância que este ano celebramos o centenário de nascimento de Sophia de Mello Breyner. O meu tio não escreveu poesia e a sua história talvez tenha mais de dramático que de lírico pois partiu cedo de mais, vítima (também) das consequências do mau tempo que por esta altura do ano atinge (desde há alguns anos) o centro e norte de Moçambique. Este ano o Ciclone Idai trouxe mais informação (ainda assim escassa e incompleta), mas noutros anos os cortes de estradas, o isolamento, a falta de alimentos ou as doenças endémicas também se fizeram sentir neste território, assim aconteceu em 2015 em Nampula e nesse ano a malária ganhou a batalha derrubando um dos nossos, mais um homem bom em pleno século XXI.
Os meus actos de homenagem são solitários, secretos e individuais, como sou colecionadora de coisas, encontro nas coisas a forma de me ligar aos outros tanto vivos como mortos. Quando há uma festa de família por exemplo, sem que ninguém saiba levo comigo a última prenda que ele me enviou de Moçambique, quando a coloco sorrio e sei que vamos juntos para a festa.
Tenho vários objectos assim, vários objectos para os quais sorrio e digo, sem que ninguém saiba: Vamos juntos! E são tantos os afectos que transporto nas viagens, nos caminhos, nas festas, que é quase impossível sentir-me sozinha.
Este é o desejo que tenho para todos os que na Beira (Moçambique) são vítimas das alterações climáticas, para todos os que ficaram sem chão e por todo o "futuro" que foi levado pelo vento. No imediato estas pessoas precisam de cuidados de saúde, precisam que a epidemias e as doenças como a malária e a cólera sejam controladas, precisam de ser vistos por profissionais especializados e habituados a situações de emergência. Eu e a minha família optámos por apoiar nesta fase da catástrofe os Médicos Sem Fronteiras e por isso hoje o presente de aniversário do meu tio vai para os profissionais especializados que em regime de voluntariado (remunerado), estão a trabalhar naquela região e que podem com a nossa ajuda fazer a diferença entre a vida e a morte.

Os Médicos Sem Fronteiras têm um fundo de emergência para o Ciclone Idai e actuam na região, porque este não é só um problema de Moçambique, é também do Zimbabue e do Malawi. Escolho os MSF porque conheço o trabalho e pela transparência que nos comunicam. Sabemos que o nosso donativo há-se ser utilizado em 83% e que o remanescente é repartido em despesas de estrutura (5%) e de angariação de fundos (12%). Sabemos também que sem estrutura e sem fundos os trabalhos não podem ser executados.
Opto pelo site francês, porque ainda não está operacional o site português, e porque foi o mais simples de fazer o donativo directamente para o Fundo de Emergência do Ciclone Idai. Comecei pelo espanhol mas não consegui formalizar o donativo por causa do NIF e por isso passei ao país seguinte, como faço de carro. Optei pelo pagamento por cartão de crédito e depois de formalizada a transação recebi um agradecimento do presidente dos MSF.
Assim nós celebramos a vida e agradecemos a presença do meu tio António! Desejamos que as vítimas do Ciclone Idai resistam às águas e às doenças e que a saúde volte para que uma região inteira tenha a força de reconstruir o que o vento arrancou com violência. Nós também sabemos o que é isto. Que a força e a esperança nunca nos faltem.
Parabéns e obrigada Titó!
https://www.msf.fr/actualites/cyclone-idai-au-mozambique-zimbabwe-et-malawi-les-equipes-de-msf-mobilisees-sur-place
Filme Human:
https://www.youtube.com/watch?v=ShttAt5xtto





quarta-feira, 6 de março de 2019

Vejo-te passar todos os dias...

O que escrevo em baixo passou-se em Bissau há umas semanas! E hoje estava aqui a pensar na vida que se cumpre e não se cumpre... A olhar para os últimos sete anos de uma história que conheço por dentro e veio-me este episódio à cabeça, como me vieram todas as pessoas que me amam, todas as que permanecem e todas as que habitam o meu coração (pelas quais sou tão grata e feliz).

Chegava a casa depois de um jantar de amigas carregada, sem sacos (porque os plásticos são coisas que evito e os sacos de pano nem sempre estão à mão), trazia as compras de artesãos locais nos braços e uma fatia de bolo que acompanharia o antibiótico tomado a meio da noite.

O guarda da casa abriu a porta, disse-me boa noite e informou-me que havia um rapaz que queria falar comigo! Eu, que não tinha visto se não as mesmas pessoas que costumam ver filmes no computador em frente ao meu portão, fiquei espantada! Já um dia a irmã de um amigo me esperara por horas, quem teria hoje aguentado até à meia noite o meu regresso a casa? 
Voltei à rua e ele apontou para um dos seguranças que se levantou com tranquilidade. Mantive-me na rua em pé com a minha trouxa nos braços, cumprimentei-o e fiquei de ouvidos. Eu e todos os guardas das casas da rua que se juntam ali para passar o tempo.
Disse-me que queria falar em privado, o que não é inédito, já a semana passada uma das mulheres que trabalha num projecto que eu acompanho me pedia, em privado, ajuda para chegar a Portugal. Convidei-o para o lado de dentro do portão e ele disse que se chamava António, que me via passar todos os dias, que eu sou uma mulher muito bonita, alegre e que gostava muito de mim. Por isso queria ser meu namorado. A conjugação dos verbos é minha interpretação livre para resumir a conversa, contudo o conteúdo era exactamente este. E depois disto ficou calado, como se me estivesse a vender uns metros de pano e agora era só preciso eu escolher o padrão.
Sorri-lhe meio aparvalhada porque não queria comprar nada e não fazia a mínima ideia o que responder... Estava grata a tudo o que trazia nos braços e que sentia como protecção de um amor que me era estranho e desconfortável. Abordagens destas não são novas e não há quem não tenha uma história num táxi, no mercado ou na vida do dia a dia! Mas de um "desconhecido" que me via todos os dias, sabia os meus horários e a minha forma de andar, pareceu-me um tanto ou quanto "original" e isso deixou-me desconfortável.
Se me distraio tenho a tentação de pensar que é possível que ele saiba mais de mim que eu própria, afinal isto também é terra de feiticeiros heheh!
Estendi-lhe a mão num "passou-bem", mais espantada com o pragmatismo que pela declaração.
Agradeci a coragem e a objectividade da abordagem e disse-lhe que já tinha namorado (que é como se resolvem as coisas aqui, não por opção mas por falta de espaço...) e disse também que naquela rua passam mulheres muito bonitas e que ele vai encontrar uma mulher que goste de verdade (descartando logo a veracidade daquele sentimento...).
Ele reagiu, não ao facto da possibilidade de eu ter namorado mas, ao facto de ele não estar interessado em mais nenhuma das mulheres que passavam. Claro que eu identifiquei logo esta minha velha mania de arranjar soluções para os problemas que não são meus... Só depois me dou conta desta reacção quase inconsciente e fico com vontade de morder a língua. - Estavas tão bem calada, digo para os meus botões.
Tocou-me o gesto deste homem. Esta coragem naif de alguém se dirigir ao desconhecido e simplesmente dizer-lhe: gosto de ti, quero ser teu namorado, "quero comprometer-me contigo". (Bom, claro que aqui o sentido de comprometimento é muito diferente do que eu estou habituada e isto é uma outra longa conversa que para o caso não interessa nada.) E também me tocou a minha tentação de quase lhe querer provar que ele estava enganado... E também para esta faz sentido olhar.
Confesso que nunca tinha visto o António, e nem imaginava que era vista por ele.
Nas minhas orações peço para o António o mesmo que peço para mim, que o amor o encontre e que ele se deixe encontrar. É o efeito que este acto de descaramento e coragem tem em mim.
Que dizer-lhe, se não, sorrir-lhe desejar-lhe uma noite feliz e todo o bem do mundo?
Falar-lhe que cada dia acredito mais que as relações precisam de fortes denominadores comuns, de propósitos que são maiores que a soma das partes e que para isso precisamos de ver e ser vistos... seria uma perda de tempo para ambos ainda para mais, estando eu tão carregada de tralhas, de febre e de sonhos!
Passei a cumprimentar o António sempre que passava por ele na rua, a sorrir-lhe e a tratá-lo pelo nome, e sempre que me cruzei desejei aprender com ele a não ter medo de dizer o que me vai no coração e a acreditar nos corações dos outros!

E depois de contar a história deste e doutro António à Marta ela escreveu:
"...aparecerão mil e um Antónios como as mil e uma noites mágicas em que te seja importante escutares essa voz de dentro: um grande Amor está em Ti! Entre TU e a tua Alma!! E nós os Anjos dançamos e celebramos contigo!!" 
Está tudo perfeito, não há falta alguma, os anjos, esses, veem-me todos os dias sem que eu tenha a capacidade de os ver ;-)





sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Andar...


Na calçada havia uma pegada desenhada no mosaico de pedra. Uma sola e um tacão largo de calcário preto.
Parei com a certeza que faltava o par. Um esquecimento na poética do espaço...
Olhei melhor e entendi "por dentro" que em movimento, os pés não andam lado a lado. Nunca num movimento paralelo. Equilibram-se sem se tocarem... Cruzam-se e não param, alternando a carga com confiança um no outro. Um exercício dinâmico de equilíbrio e foco. 
Sorri para a calçada a pensar que por aquela porta se entra com o pé direito e que efectivamente está tudo certo, e nada falta a quem caminha.
Segui para casa feliz, pé ante pé... para não acordar desta poesia urbana.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Violência doméstica...

Violência doméstica é aquela que é praticada em casa contra conjures, crianças ou idosos num contexto "familiar" ou de "casa". Toda a violência é condenável e esta, que ocorre em contextos privados merece uma atenção especial até porque os exemplos de abusos, ineficácia da proteção social e injustiça são cada vez mais visíveis.
A violência a que a UMAR (ver edição do Jornal de Leiria de 7 de Fevereiro de 2019) se refere é baseada em questões de género e aqui as fronteiras vão muito para lá do doméstico. O importante no meu entender é que os juízes julguem os casos enquadrados nas limites máximos das penas e não nos mínimos (que possibilitam penas suspensas e outras situações de aparente impunidade), que se abandone este clima de injustiça e que a justiça e os sistemas de proteção social sejam cada vez mais céleres nos processos, no cuidado e nas respostas às vitimas. A verdade é que sabemos que as penas graves não são, por si só, dissuasoras de comportamentos ilícitos, por isso muito há a fazer em todos os sectores da sociedade.
O mais importante é que todos ganhemos consciência que a violência não é caminho para nada nem para ninguém. Assumindo que em diferentes fases da vida, todos somos potenciais vítimas e/ou agressores, ou estaremos perto de vítimas e/ou agressores, teremos de estar atentos a comportamentos compulsivos e percebermos que não podemos tolerar abusos nem infringir abusos de nenhuma espécie, combatendo e abandonando o padrão de normalidade que a violência ocupa, ainda hoje, na nossa sociedade.
Colectivamente é importante que condenemos este tipo de comportamento (e aqui o sentido colectivo é fundamental) que sejamos alavanca para uma efectiva mudança social, consistente e continuada. Denunciar situações, apoiar as partes, estar perto das vítimas, não desresponsabilizar o agressor, são caminhos possíveis para a construção de uma sociedade mais pacífica e respeitadora da diferença e onde as relações de poder sejam justas, equilibradas e geradoras de bem estar.
A mutilação genital feminina, a violência no namoro, o assédio, os salários desiguais para o mesmo trabalho, os abusos sexuais de várias espécies, a violência doméstica, têm de sair da esfera privada ou da responsabilidade do "outro" e serem assumidos como um problema de todos, que todos somos chamados a actuar, condenar e principalmente prevenir, falando sobre ele, trazendo-o à luz e educando homens e mulheres, em todas as idades, para o respeito próprio, para o respeito mútuo, para o feminismo e para o cuidado com a pessoa humana independentemente de género, condição social, recursos, origem geográfica entre outras.

Nota:
Jornal de Leiria pediu-me um comentário para o Fórum da Semana, que na edição de 7 de Fevereiro de 2019 foi sobre "Moldura penal mais dura para crimes de violência doméstica?". Lá usei com parcimónia os 450 caracteres com espaços... Mas sobraram-me muitos que arquivo aqui em "casa" (para que todos possam ver), afinal a opinião era sobre coisas domésticas (que não podem ser caladas, escondidas ou dissimuladas)!


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

6x7...


Hoje faço anos! Simbolicamente 
inicia também um novo ciclo (ai como eu gosto disto heheh). Parabéns a mim e a todos os que celebram comigo, que sejam de festa todos os dias.

O primeiro texto deste ano conta um episódio que vivi durante o ano que passou. É uma espécie de metáfora que resume a aprendizagem e a confiança que a vida me proporcionou nos últimos anos ou a disponibilidade que fui treinando, (ou acolhendo), para parar, entrar em relação, mudar os meus planos e seguir fazendo grandes amigos e juntos chegarmos aos sítios que desejamos, que nos fazem mais felizes... Para juntos chegarmos mais rapidamente a casa. 
Conheci o João num dia de Outono em pleno centro de Leiria, num dia antes de uma viagem de regresso a Bissau! O João estava parado no meio de uma passadeira com o sinal vermelho para peões e carros à distância de braços. Eu quase corria no passeio perpendicular à passadeira mas chamou-me a atenção aquela cena, travei, voltei para trás e perguntei se precisava de alguma coisa. Estava desorientado. Procurava uma direcção. 
Já no passeio conversámos um pouco, disse-me para onde queria ir e não consegui dizer simplesmente que era em frente, atravessando quatro estradas, nem todas no mesmo sentido, e percebi na pele o quanto é difícil explicar o caminho a um cego. Disse que o levava lá, e com isto aprendi a guiar um invisual. Percebendo que estava com presa, explicou-me que não chegaríamos lá, com rapidez, com o meu braço na posição onde segurava o dele, seria ele a segurar o meu. Tinha confiança quando falava do que dominava. Ri-me com ele dizendo: “quem não sabe é como quem não vê"! Naquela disciplina claramente a cega era eu. Na verdade era ele que queria ser guiado e não eu que o guiava, o caminho era do dele, o destino era o dele, a vontade era a dele... Guiar ou deixar-se ser guiado, um surpreendente jogo de diferenças.
Guiar um cego é como uma dança e o João sabe dançar bem. Anda no IPL mas não é de Leiria, está a fazer um trabalho sobre acessibilidades nos transportes públicos e tinha ido a uma reunião por causa disso. Deixei o João junto da vizinha com quem ia apanhar boleia para casa e o último gesto que lhe vi foi o de apertar o relógio e o levar ao ouvido para ouvir as horas. Tinha chegado a tempo.
Continuei correndo muito feliz por conseguir parar frente ao desconhecido sempre que é preciso. E aprendo tanto quando paro ou quando me deixo guiar pela vida e mudo o rumo para chegar mais perto de casa.
Obrigada de coração, querido João, fizeste-me ver coisas que nunca tinha visto.

25 de abril! Sempre!

Uma amiga que vai descer a avenida da Liberdade daqui a pouco e não é de missas, convidou-me para uma missa. Encontrando um padre amigo numa...