terça-feira, 25 de maio de 2021

Dia de África

Ontem falaram-me de um país sem sonhos. Falar de um país sem sonhos é falar de um país sem esperança. Tanto a esperança como os sonhos são construções humanas (tal como os países) e precisam de chão para ganhar alicerces. H
oje é dia de um continente tantas vezes confundido com um país, um continente onde dizem que nasceu a humanidade e onde ainda nascem países. Nos poucos países que conheci nesta imensidão, vivi sempre inteira, consciente umas vezes do meu privilégio, outras da minha vulnerabilidade. Não vou falar do calor, da terra molhada nem do cheio a chuva que são clichés de um romantismo novélico que compõe um cenário verdadeiro...

Falo antes da consciência da diferença e do sentido de identidade que me revistiu, a mim, que nasci à sombra do Namuli, na terra do chá a caminho do Índico.
Detenho-me na grandeza dos espaços selvagens e dos espaços edificados pelos sonhos. O pior que pode acontecer aos sonhos é serem habitados pela indiferença e pela falta de afetos. Os espaços selvagens não precisam disso.
Quanto mais conheço África mais sou do mundo e quanto mais sou do mundo mais o vejo cheio de misturas e ligações, desde o meu ponto de vista de uma mulher branca, portuguesa e com ilusões de liberdade.
Um mundo em que os contextos determinam comportamentos, hábitos e características, e isso potencia a diferença, o espanto, o encontro, a partilha e a aprendizagem de nós próprios e dos outros, ou de nós próprios nos outros. A irmandade.
"Ubuntu" e "corzon" são talvez as duas palavras que mais gosto nesta África que habito e que me habita desde sempre.
Feliz Dia de África para todos, em "união africana" que vai para lá de um continente.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Sem título

É mudo o silêncio de onde me falas.

Em tempos comunicámos no inaudível, agora nem com altifalantes nos conseguimos ouvir. Mas para lá da audição está o entendimento. Para lá dos sentidos está o coração.

Quando o verbo se torna estéril perdemos toda a esperança de criação.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Saltinho

Estava perto da nascente do rio, subira até lá à procura das alturas e das águas frescas.

O jantar foi canja de pombo caçado na manhã daquele dia. A panela, onde boiavam bolinhas pequeninas de massa, deu sentido ao desporto que a incoerência de comer carne não percebe.
A meio da refeição o gerador falhou e o resto da noite foi iluminada por pequenas lanternas que os caçadores traziam consigo.
Quando chegou ao quarto acendeu a vela para lavar os dentes e encontrar no espelho o sorriso de um dia passado dentro de água. Imaginou-se filha de Egbá ou de Yemajá, gerada nos buracos das rochas daquele lugar, parida para a vida naqueles rápidos que hão-de chegar à imensidão do mar. Expulsa pela força da gravidade e pela urgência de se fazer grande.
Calhou-lhe em sorte um colchão de molas que ela sentia na pele com tanto vigor que dáva para questionar se alguma vez teria havido fibra a proteger do corpo o metal. Talvez uma cama de pregos fosse mais dura e lisa, mas esta servia para a fazer acreditar que podia ser filha de um mestre faquir a viver na Índia em vez de na África Ocidental.
Sem eletricidade e sem ar condicionado a noite parecia ainda mais escura e quente do que era na realidade.
Depois de certificar que as janelas estavam abertas e protegidas por rede deitou a cabeça na almofada macia que ampliava o contraste da irregularidade do leito.
Pensou nas avaliações relativas da vida, na forma como as comparações dependem dos objetos comparados, de como as circunstâncias condicionam o indivíduo, de como a moralidade serve para controlar um grupo dando-lhe pertença e sentido. Pensou em como o mérito parece ter sido uma invenção de sociedades que se preocupam mais com o poder e com o dinheiro que com a justiça. Buscáva uma definição de fecundidade no chão e não na filosofia... Assim não a encontraria.
Não foi por mérito que nasceu mulher num país de escolaridade obrigatória, onde pensa que pôde fazer escolhas. Não foi por mérito que cresceu numa família que lhe acolheu os sonhos de voar e amparou as quedas.
Não foi por mérito que perdeu um amor que não lhe servia, como não foi por mérito que encontrou outro amor, na medida certa do tempo e espaço em que se tornara. Em breve estariam juntos e era, com essa ideia, que se tapava naquela noite. Afinal não precisava de muita coisa para se sentir confortável e não havia nada no futuro que lhe metesse medo.

Saltinho, Rio Corubal na Guiné-Bissau Maio 2021


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Carta


Hoje recebi uma carta envaida há 4 anos e 4 meses. Dentro chegou um postal de Natal que fala de amor e do Amor. Um gesto de amizade e generosidade que me emocionou muito. Se somarmos os dois algarismos das unidades de tempo que compoêm a distância que separa a escrita da recepção, damos de cara com o número oito e se deitarmos esse oito veremos nele o infinito. Esse também é um simbolo do Amor. Este intervalo a vida fez-se surpresa em tantas coisas, tantos riscos, tantas perdas e ganhos, num saldo claramente positivo. Tantos desafios aceites, tantos caminhos percorridos, tantos motivos para agradecer. Uma carta que chega passado este tempo todo é mote para pesar o tempo na balança das palavras trazendo à memória as reconstruções sucessivas do edificio que sou. 

Desde 2016 eu a Andreia mudámos de morada, juntámos e serpámos sonhos, amanheceram coisas novas em nós e connosco e neste devir não perdemos a ligação ao mais importante, àquilo que invocamos em unissono independentemente da distânia. É isto o Amor. Obrigada amiga.

Há quatro anos eu não podia imaginar-me "ainda" aqui e neste intervalo de infinito já me imaginei em tantos sitios, alguns chegaram mesmo a ser pisados, experimentados... Para dizer a verdade não sei quanto tempo estará contido neste "oito deitado", houve dias que pareceram segundos e segundos que se assemelharam a anos. É curvo e contorcido este tempo, grafado numa linearidade enleada, alternado entre novelo e meada, meada e novelo... 

Gosto de imaginar que se esta carta me encontrou aqui, e no dia em que me encontrou, confirma o tempo e o espaço que estou a viver. 

Que outras cartas já foram escritas e esperam para serem encontradas noutras moradas? 

Seguimos juntas!

25 de abril! Sempre!

Uma amiga que vai descer a avenida da Liberdade daqui a pouco e não é de missas, convidou-me para uma missa. Encontrando um padre amigo numa...