quarta-feira, 29 de março de 2017

Kom, koom...

Há dias em que batem à porta para saber se tens electricidade paga ou se é uma puxada.
Há dias em que batem à porta para oferecer um serviço sério de limpeza.
Há dias em que batem à porta para oferecer um aparar de árvore.
Há dias em que batem à porta para oferecer um postal ou alguns folhados de peixe.
Há dias em que batem à porta para pedir um copo de água.
Por aqui não se "bate à porta". Por aqui chega-se ao portão e grita-se para dentro "Kom Kom".
Por aqui não se chama "Ó da casa!". Por aqui fala-se alto à soleira de uma entrada com porta ou sem porta, sem sítio para bater a mão em algo que se faça ouvir.  Aqui não se bate, não se chama, é-se a própria batida. É-se a porta e a mão, é-se a percussão que anuncia que se chega, que se quer saber quem está dentro... Que se quer entrar.
Kom, koommm, kom, kooomm! Digo eu sempre que chego a casa.



sábado, 25 de março de 2017

Saúde...

Na Guiné-Bissau, a Cáritas tem Centros de Recuperação Nutricional ou Centros de Reabilitação Nutricional, conforme quem os apresenta. São quase 25 espalhados por todo o país, geridos normalmente por religiosas consagradas que empregam colaboradores locais. Entre outras valências muito importantes, são espaços que respondem aos problemas de desnutrição e de educação alimentar flagrantes por aqui. 
Num dos dias que visitei um dos centros longínquos, pois estão o mais perto possível das pessoas que precisam, o que quer dizer de difícil acesso, a irmã responsável partilhava uma constatação:
- Em tempo de festas os casos de desnutrição diminuem drasticamente. No tempo da campanha do caju, quando todos têm trabalho, e até o mais pequenino vira patrão de si mesmo, é a mesma coisa.

E fiquei a pensar como é profunda, e reflexo da nossa humanidade, esta constatação. Os momentos de alegria e de festa são sinal de saúde, dão saúde e fazem-nos imunes. O trabalho, o trabalho que tem retorno, reconhecimento, o trabalho que nos melhora a vida e nos ocupa mãos e cabeça, estejamos onde estivermos, dá-nos saúde, faz-nos mais fortes, mais activos e mais felizes.
Não é nenhuma ideologia política, é uma constatação no interior de um dos países com o índice de desenvolvimento mais baixo do do mundo (claro que esse índice se define aos olhos de outras gentes que não estas). Não será uma verdade absoluta num pais em que a esperança media de vida não chega aos 50 anos e onde só os mais básicos problemas de saúde têm alguma (remota) possibilidade de resposta. Num país em que os governantes mandam as suas mulheres parirem noutros países ou eles próprios nunca entrarão nos hospitais que governam, para curar um dedo que seja. 
Num país como este, acontece o mesmo que em todos, a festa e o trabalho são sinais de saúde, ou pelo menos de diminuição dos casos de doença! 
Então que num país como este, (neste campo ao mesmo nível de todos), que o trabalho e a festa sejam uma constante e a todos nos curem dos males do corpo e da alma que se instalam pela falta (ou excesso) deles.




quinta-feira, 16 de março de 2017

Hábitos...

Entre 2010 e 2011 tive uma crónica quinzenal num jornal regional em Portugal. O Região de Leiria convidou-me para escrever e eu aceitei, com medo, um desafio que me deu muito prazer. Hoje rio a olhar para muitas das palavras que escrevi, das ideias que alinhavei. Rio comigo e rio para mim. 
É lugar comum dizer-se que é bom sair, é bom viajar... É bom sim, bom mas não ao mesmo nível do comer saudável ou fazer desporto. Não é por razões higiénicas que é bom, é precisamente pelo contrário.
Estar num local novo aos nosso hábitos é mais que uma diferença geográfica é muito mais do que uma alteração de coordenadas, é uma contaminação física, mental e emocional. É acima e tudo uma viagem no tempo. (As máquinas do tempo existem há mais tempo do que imaginamos, existem desde que nos começámos a conjugar no plural muito antes de sabermos o que era uma máquina.) E há tantos tempos quanto paisagens e não falo do clima. Falo do tempo dos homens, das histórias, dos hábitos, do ser. Há um "Ser" com tempo, por exemplo, o meu ser de há seis anos não está na mesma distância temporal do meu ser de hoje.
Lembrei-me disso a respeito do texto em baixo. Hoje não há um dia em que não veja um homem a urinar aos olhos de todos e sem parede, pessoas a cuspir para o chão, ou todo o tipo de lixo nas ruas... Passaram mais de seis anos e hoje não me impressionam as beatas, nem me lembro delas e até parece que nunca as vi por aqui. Somos mesmo nós e as nossas circunstâncias, nós e o nosso contexto, nós e o nosso "tempo", que nada tem a ver com calendários, tal como esta "geografia" pouco tem a ver com mapas.

Hábitos...
Se atentarem uns minutos à entrada de um restaurante ou sala de espectáculos, por exemplo, podem contar o número de pessoas que ao entrar faz um gesto mais ou menos gracioso de deitar o resto do cigarro para o chão. 
Há quem se aprimore da acção e descreva um arco gordinho projectando a beata a partir do polegar, alavancada pelo indicador. Há quem opte por um gesto afiado em linha recta para o chão aproveitando a oportunidade para pisar de forma opressiva e circular a pobre da beata que tenta ainda libertar um último suspiro. 
Podem dizer que não há cinzeiros, mas não são as desculpas que necessariamente legitimam os actos.
Nada tenho contra quem fuma, nem é sobre o acto em si que partilho a minha opinião. 
Deitar uma beata fora não é a mesma coisa que atirar uma pedra rolada ao rio e admirar as vezes que ela saltará sobre a água até se afundar no leito que a trouxe. 
Deitar uma beata ao chão de forma “inconsciente”, não é um hábito natural: mostra a forma como encaramos o espaço comum e está ao nível do cuspir para o chão, livrar-se da pastilha elástica ou urinar nas paredes. 

Claro que evitamos conscientemente pensar em tudo isto... mas se pensássemos, agiríamos de outra maneira?
Região de Leiria 30 de Março de 2011








quarta-feira, 8 de março de 2017

Estações...


No sítio onde estou, António Vivaldi não teria escrito um concerto para piano e orquestra a que chamou Quatro Estações e os seus conterrâneos não teriam "inventado" uma pizza do mesmo nome para se saciarem e agradarem a todos os comensais. 
No sítio onde estou existem duas estações, a estação das chuvas e a estação seca. Não há misturas nem confusões.
Na Guiné-Bissau, numa estação chove e noutra não.
Dividir o tempo em dois requer outro alinhamento mental, outra forma de ver ritmos e cores. É a geografia e o clima a modelar a mente e o corpo, para uma forma de ser que se faz ao som de koras, balafons, djambés e tinas em vez de violinos e orquestras. 
E quando chove na estação seca? 
Quando, contra todas as probabilidades ou todas as certezas chove em Fevereiro? 
Aí os homens grandes dizem que é "chuva antiga", chuva que não foi chovida no seu tempo. Chuva que vem cumprir-se.
É chuva que vem estragar as mangas, apodrecer o arroz que descansa seguro no campo a céu aberto depois de ter sido apanhado. É chuva que espanta e apanha toda a gente desprevenida porque esta gente confia no ritmo binário de se ser.
Quando vejo chover em Fevereiro penso de outra maneira. Penso que é chuva da que há-de vir, chuva que veio à frente ver a terra da qual tinha saudades mesmo que isso estrague a surpresa do dia que marcou vir em Junho. Quando vejo chover aqui, na estação seca, sinto o mesmo quando vejo um dia de Sol quente e seco na minha terra em pleno Inverno, imagino que esse dia traz cumprimentos da Primavera e será prenuncio do que há-de vir. Nunca, restos do que já veio como sussurram os homens grandes.
A chuva antiga está tão fora de mim como a alemã rosada que encontro em biquíni na praia de Albufeira no mês de Fevereiro.
E fico-me aqui a saborear a sabedoria da chuva antiga, da chuva não chovida de que fala, quem sabe coisas que eu não sei. Da chuva que vem do passado, que estraga o ritmo dos homens só para se cumprir. Porque o bem maior é cumprir-se e nunca deixar de se chover. Mesmo que se venha tarde. Mesmo que se tenha perdido o comboio que partiu em Novembro... Claro que aqui não há comboios. 

Imagino que nesta sabedoria antiga as despedidas são muito mais significativas que os encontros. A morte muito mais mágica que a vida! O fim muito mais importante que o principio. 
Isto ninguém me disse, foi a "chuva antiga" que me inspirou.












sábado, 4 de março de 2017

Anoitecer...

Ninguém pode dizer que uma tabanca é uma coisa sossegada! Talvez o possam dizer na hora da sesta... Na hora do calor concordo, depois não!
O climax chega ao final do dia, os galos cantam ao despique, as cabras balem numa conversa infernal. As mulheres falam, alguém pila ritmadamente alimentos ou descasca arroz, e as crianças... as crianças são tantas, gritam, choram, falam, correm. Ouve-se um rádio. Alguma música ao fundo. Os pássaros juntam-se nas árvores pondo a conversa em dia ensurdecedoramente.
Tudo isto impede que nos ouçamos sem esforço quando falamos baixo a um metro de distância.
Parece que se ouvem corujas... Ouvem-se coisas que não se parecem com nada e que, na noite, atribuo a seres fantásticos que povoam o imaginário animista desta gente. Daqui a pouco isto acalma para dar lugar aos grilos e às cigarras. Lá pelas duas da manhã chegará o por fim um silêncio que me é por demais saboroso!
Uma tabanca não é uma coisa silenciosa, não, e ainda assim este barulho não agride, é o barulho da vida.... Este é como o barulho do mar, o barulho das ondas...  Afinal há pouca diferença, porque também aqui são os ritmos das luas que influenciam as marés! 
Adormeço embalada por este som, constatando que me dá a paz que o mar oferece, num vai e vem de vida, num vai e vem de vidas que me espantam por tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais ao que conheço. É lindo o anoitecer numa tabanca... É único e mágico que não há palavras que o descrevam e ainda assim tento aqui deitada e em silêncio, com luz de frontal, envolvida num casulo de rede mosquiteira... Tento gravar tinta azul neste caderno quadriculado como quem tatua um símbolo na pele consciente que mudem as circunstâncias, os gostos ou as modas nunca mais da nossa pele sairá aquela marca que optámos ter e nos orgulhamos de ver.
Nunca me arrependi de uma tatuagem e sei que nunca me arrependerei das noites que passo assim imóvel a ouvir os barulhos que me tatuam por dentro. 
As paisagens que vejo de olhos fechados ou na escuridão dos dias são de todas as mais fantásticas. Os meus ouvidos pintam quadros que os olhos nunca conseguirão ver. Talvez porque não existam verdadeiramente... Ou porque, talvez, esta seja a única forma de existir verdadeiramente, e este o único acesso a essa verdade.

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...