segunda-feira, 9 de abril de 2018

Fachadas...

O senhor Jonas bateu à porta para pedir água e electricidade para as obras do prédio. É o encarregado da remodelação da fachada, simpático e educado que me trata por "senhora" e agradece sempre com extrema delicadeza e cortesia.
Não é fácil resolvermos a falta de electricidade e de água do condomínio, mas eu digo-lhe que havemos de encontrar a melhor solução (mesmo se ainda não sei qual será, ou até, se não existe de facto nenhuma solução cómoda que dependa de mim). Ele sorri a esta esperança e subitamente lembra-se que hoje não é dia de sorrir. 
- "Desculpe senhora, eu estou a rir, mas eu estou muito triste."
Mataram o sobrinho do senhor Jonas. 
As lágrimas escorrem pelo rosto moreno e são amparadas pelas mãos calejadas de pedreiro experiente. O senhor Jonas é brasileiro e trabalha em Portugal há 3 anos. A família continua no Brasil perto de Vitória no estado de Espirito Santo e ontem, no telefonema regular que faz para esposa, recebeu esta notícia.
O filho do irmão tinha 16 anos e foi assassinado. O senhor Jonas assegura que ele não se metia com drogas e era um miúdo que gostava muito de estudar, como se isso fosse o mais importante. Não me interessam os pormenores nem a bidimensionalidade da vida arrumada em bom ou mau, nem as curiosidades de tamanha brutalidade. Toda a morte é uma brutalidade. Seguro-lhe no braço e fico ali a ouvi-lo fazer o luto com uma desconhecida. 

Fala-me de quando o sobrinho era pequeno e ia ter com ele ao trabalho, faz o gesto para mostrar um menino de 80 cm "a pegar numa latinha com água e fingir fazer massa, ele brincava, dava-nos ânimo e nós a ele", suspira. "Hoje era um rapaz alto, bonito, olho azul, pele clara... Ninguém dá a vida e por isso ninguém devia tirá-la. Só Deus. Que Deus faça aqueles bandidos mudarem de vida". 
O senhor Jonas tem uma idade indefinida que eu imagino ter a forma do número sessenta. O que me disse no início destes trabalhos é que veio para Portugal em busca de uma vida melhor e mais segura, por causa da violência na sua cidade e que espera este ano trazer a sua família. Contou, na altura, a história de algumas mortes e assaltos violentos no seu bairro, na sua rua...
Hoje percebo que nunca antes havia sido assassinado ninguém tão próximo, mesmo tendo visto morrer alguns vizinhos. O senhor Jonas está triste, era chegado ao sobrinho e a distância amplia a tristeza da sua família, do seu querido irmão e de toda esta desgraça. 

O senhor Jonas está a trabalhar, como todas as segundas-feiras, e quem passa na rua e o vê energético a fazer cimento para revestir a fachada do prédio não imagina o que lhe vai por dentro. Nem eu, que lhe segurei o braço e lhe vi as lágrimas, consigo saber o que o habita. Imaginar o que vai dentro dos outros requer ir dentro de nós e revisitar as nossas histórias, as divisões onde guardamos experiências parecidas. Fui lá buscar referências para esta dor e lembrei as minhas perdas. Também me tocou aquela perda. 
Continua a ser importante tratar das fachadas. E para mim continua a ser cada vez mais importante "espreitar" lá para dentro, como permitiu hoje o senhor Jonas. Obrigada pela confiança.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Coelhos...

Ofereceram-me um coelhinho de chocolate como presente de Páscoa. Gosto muito de presentes e de chocolates. Ainda assim, tirando a Páscoa e o Natal, penso que os chocolates não são presentes, porque são sempre passado... Desaparecem. Enfim eu ainda não comi o coelho, por isso ele continua presente.
Estava a olhar para ele e pensei que daria uma boa fotografia para a sequência de três imagens que uso no Instagram e lá vou eu conversar com o coelho que habita a cozinha e pergunto-lhe: estarás tu, querido coelhinho de chocolate, para os vegetarianos, da mesma forma que os cigarros de chocolate estão para as crianças? Ele não respondeu, sorri a imaginar-lhe a resposta numa voz fininha.
O primeiro cliché é pensar que o que conta é o interior. A forma é um mero artefacto da superficialidade. 
E não será a forma uma maneira de mostrar o interior? É e não é! 
O que seria do coelhinho sem a sua roupinha dourada que lhe define os olhos e o sorriso?
E o mais importante é que assim vestido eu sei que o coelho é de chocolate mesmo sem ver o chocolate.
Quando me dizem para usar decotes (que me favorecem) eu não mudo a forma (as mamas continuam as mesma) e também não mudo o interior... Ou mudo ambas?
Talvez isto venha explicado em algum dos livros que tenho aqui ao lado e seja um bom pretexto para uma boa, profunda e divertida conversa sobre arte e decoração. Sobre percepção e verdade, imaginação e desejo... Sem uma pulsão interior não há arte, e ainda assim a decoração de interiores é uma disciplina forte e importante no nosso contexto. (Um trocadilho de palavras e de sentidos heehhheh) 
Teorizo sem recorrer a fontes, sem ler outros textos que falem sobre isto, nem citar autores famosos, que a arte é um processo predominante individual (mesmo que partilhado), intencional (mesmo que espontâneo), com história (mesmo que único) que leva cada um mais dentro de si (estejamos nós de um lado ou de outro da obra), a decoração é um processo social que nos leva aos outros, um resultado para ser visto em contraponto com um resultado em si que penso ser o projecto artístico.
Dará o mesmo prazer um decote e um chocolate? Enquanto objecto um coelhinho de Páscoa sem o papel colorido que o decora é um objecto amorfo, já uma mulher com a camisola de gola alta pode ser chamada de amorfa? E de decote pode se tão apetitosa como um coelhinho de chocolate revestido a papel dourado?
Mas se o homem e a mulher não são obras de arte para que raio estou a fazer esta comparação? Não estamos a falar da mesma coisa, a menos que estejamos a falar só de mamas e por aí eu nem arrisco opinar, prefiro olhar para as obras do Jeff Koons.
Bom tempo de Páscoa para todos os coelhinhos e decotes desta complexa contemporaneidade da traição das imagens.



"A Traição das Imagens" de René Magritte (1929)







Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...