terça-feira, 3 de setembro de 2019

Interior...

A parte de trás do meu prédio dá para o interior de quarteirão onde confluí a parte de trás dos prédios de quatro ruas. São as traseiras de uns quinze edifícios todos com mais de quatro andares. A verdade é que são estruturas antigas que albergam apartamentos espaçosos e com grandes janelas, na sua maioria iluminando cozinhas.
Da minha janela vejo quem separa a roupa por cores, e detenho-me, muitas vezes, na forma como se estendem lençóis, cuecas ou camisas...
São preciosos estes interiores onde se expõem ou secam sem medos (ou invasões) outros interiores.
Tenho uma vizinha que usa sempre chapéu de sol quando vem à janela estender a roupa que lava à mão. Imagino que é à mão porque pinga muito e é sempre em pouca quantidade. Duas ou três peças e um chapéu dizem-me tanta coisa.
Tudo o que vejo é imaginação, faço histórias. Por exemplo o vizinho da janela em frente terminou há uns meses a relação com a namorada. Nunca mais apareceu roupa de mulher naquele estendal. Tive pena pelos dois. Ele será arquitecto e trabalha a maior parte do tempo a partir de casa, ela chegava cedo e jantavam juntos. Também deixou de ter o aquário de luz mais azulada que dava um ambiente cinematográfico à sala. Ao lado dele mora um casal de velhotes muito queridos. É sempre o senhor que estende a roupa debruçado sobre as guardas de ferro verde que o separa do estendal. Usam robe em casa e andam muito devagar.
Um apartamento deve ter algo precioso quando descubro que tem grandes de segurança, mesmo que discretas, nas janelas depois das marquises. Há um par deles nestas condições. Fico a imaginar-lhes os recheios com os quadros de pintores famosos nas paredes, esculturas em mísulas ou cerâmicas protegidas por redomas.
Neste interior crescem buganvílias cor de rosa e uma borracheira fantástica. Há uma chaminé em tijolo de burro mais alta que todos os prédios e os pássaros são muitos, com predominância para os melros.
Há vizinhos que raramente abrem as janelas. Há quem só venha à janela ou à varanda fumar ganzas. No terraço de baixo mora um grupo de jovens estrangeiros, um tipo de Erasmus que eu nunca percebi se trabalham, estudam ou estão de férias. Uma coisa é certa, as festas são fantásticas e o grupo não tem sempre a mesma composição.
Não há muitos bebés, nem muitas viúvas de preto neste segmento de cidade. Também não há militares, jogadores de futebol, saris ou tapetes de oração a precisarem de manutenção. Quem me conta isto tudo são os estendais.
Algumas janelas nunca se abrem. Uma mão cheia de apartamentos está em obras e um dos prédios está a renovar o telhado. Nesta altura do ano há mesas de jardim nos terraços e jantares ao final do dia.
A roupa essa, continua a secar ao vento e a falar-me de quem não conheço. A
maior parte das pessoas separa a trapagem em escura, branca e colorida. Eu, que sou a favor de todas as misturas, mestiçagens e cruzamentos, gosto desta vizinhança que separa a roupa por cores. É o único sítio onde me faz sentido um rigoroso critério na separação. 

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