domingo, 26 de novembro de 2023

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam mais do que uma vez e fiquei a pensar se muitas das pessoas desta ilha teriam experimentado escolher um filme entre cinco ou seis que começam à mesma hora ou teriam o hábito pegar no jornal e decidir entre duas ou três salas.

A verdade é que uma parte substancial da população não tem.

As conversas são como as cerejas e logo a seguir vem a guerra do retorno económico e do streaming, a grande aposta do negócio de um "novo média"... Fui-me perdendo nos meus pensamentos desejando saber quanto é que a Netflix cresceu na Madeira e em concreto em Rabo de Peixe depois da gravação da série feita por padrão para a indústria criticada por Moretti.

Alguém tem ou sabe onde se podem procurar estes dados?
Netflix, filmIN ou HBO democratizam os acessos e são importantes para a indústria, mas ainda assim não são garante de uma maior justiça. Não têm de ser.
Num caso de estudo relativamente próximo e sem amostra de controle, o meu, constato que a RTPplay e a TVEplay fazem muito mais pela distribuição de conteúdos que qualquer uma das plataformas pagas que não tenho.
Ainda assim é tudo uma questão de acessos... Ter eletricidade, telemóvel, computador ou televisão inteligente, mas também ter tempo, ter espaço seguro e tranquilo para assistir, ferramentas para escolher, pretexto social para falar sobre isso.
As bibliotecas estão para os livros como as "cinematecas" estarão para os filmes?
O que fizeram os videoclubes, ao cinema?
Em breve ninguém terá onde ler um DVD, e não sei se a geração que está a nascer agora terá hipótese de fazer a experiência similar de duplicar cassetes de VHS, ver séries inteiras em plataformas piratas, ou filmes passados em disco rígido entre amigos.
Não sei mesmo qual vai ser a experiência dos miúdos de hoje em dia, mas eu gostava de continuar a ver cinema em sala e a levar os meus sobrinhos comigo nessa experiência. Agora que penso acho que também vou ficar contente se eles se lembrarem de me levar quando eu for velhinha.
Paralelamente quero continuar a poder ver filmes em casa, e vejo como grande vantagem isso de podermos assistir ao espanto ou ao enfado de pijama. Hoje um projector é a minha opção à televisão, sim, os meus sobrinhos também sabem que a tia não tem nem televisão, nem microondas e que houve alturas em que não tinha luz, não por opção mas porque a eletricidade (tal como o cinema) também não é um bem universal.

Quando era novo, o meu pai passava filmes indianos e westerns num cinema em Moçambique, eu vi os meus primeiros filmes nigerianos na Guiné Bissau...
A maior parte dos filmes que vi, vi sozinha. Comparativamente ao desporto, as vezes que fui mais assídua e constante foi em tempos que tinha companhia para treinar.
É engraçado perceber o que nos motiva... Eu diria que para a maior parte das pessoas o cinema é uma experiência social, no meu caso não vejo assim.
Nunca fiz parte de um grupo de leitura, nem de discussão de filmes e para ser franca raramente gosto de ir ao cinema acompanhada porque no final do filme gosto de ver os créditos até ao fim e fico sempre com a sensação de que alguém me espera, logo, que estou a chegar atrasada a um encontro em que o que aconteceu de facto foi o outro que chegou cedo demais, porque saiu antes do filme antes do tempo. Claro que esse que saiu pergunta com razão:
- Aprende-se alguma coisa com os créditos? Lês tudo?
- Não. Respondo. Mas é o tempo que eu e o filme temos para conversar, de ele descer até às entranhas e por ali ficar a ser digerido numa reação química que precisa daquele tempo e isolamento para se projetar em mim.

Constato com tristeza que perdi o fio à meada da conversa cinéfila. Saí antes dos créditos e vocês, agora, sabem que não gosto disso e eu percebo melhor quem sai. 



sábado, 18 de novembro de 2023

Sincronicidades

No domingo fui ver um filme francês que tinha como parte da banda sonora canções de Daniel Johnston. Quis saber mais sobre o autor e descobri uma história que desconhecia e um documentário por ver.
Lá por quarta feira, uma das pessoas que sigo no instagram usava umas das músicas num pequeno vídeo e mesmo agora acabo de ouvir um podcast onde a entrevistada recomenda uma música do Daniel.
Não havia forma de cruzar isto, o filme é de 2021, o reel do meio da semana e o podcast gravado na semana passada, na minha história este alinhamento tem menos de 6 dias e pus-me a pensar que as sincronicidades são o "algoritmo" da vida.
Já tinha ouvido algumas coisas do Daniel, mas sempre de raspão, esta semana ele foi-me imposto. E eu ganhei uma consciência e um gosto que não tinha.
O que algoritmo tenta fazer de forma mais eficaz e mecânica é imitar a vida neste aspecto. A sincronicidade é mais poética e por isso muito mais mágica e surpreendente. A diferença do primeiro é que talvez, neste último, tenhamos de estar um pouco mais atentos.
Ouçam o Daniel Johnston.




quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Os animais em cativeiro e a diversão humana

A propósito de um post sobre orcas em cativeiro gostava de partilhar um ponto de vista.
Há uns tempos vi uma entrevista com um dos maiores donos de circo em Portugal que foi domador de leões. Não vi nele um mau homem, não vi nele perversidade nem maldade para com os seus animais, mesmo quando a sua vida corria perigo em frente às feras selvagens.Há uns tempos tive uma conversa longa com aficionados da tourada e com forcados e não vi neles falta de respeito para com os animais, nem me pareceram jogadores de wrestling ou de box em busca de validação da sua virilidade.
O Museu do Circo em Sarasota (Flórida) que tem uma magistral maquete de um circo antigo e muito do espólio do Circo Ringling é uma delícia de visitar  e imaginar outros tempos em que o conhecimento era feito por "contacto". Os circos na sua itinerância mostravam, ensinavam e divertiam. Da mesma forma que deixaram de mostrar aberrações humanas também podem deixar de mostrar animais selvagens.
Não conheço o senhor, mas o que passa da história do argentino que fundou o zoomarine no Algarve é coerente, ele faz o que sempre soube fazer. 
Onde quero colocar o foco não é nos jardins zoológicos, nos parques de diversões com animais em semicativeiro, nos tanques, nos circos, nas praças de touros, não gostava de colocar o foco no domador de leões, no amestrador de orcas, ou no forcado que se testam todos os dias de "espetáculo". Onde quero colocar o foco é no público que mantém esta situação e até a potencía, vibra e grita na busca de aberrações que alimentem a sua imaginação e quem sabe sua inconsciente perversidade. 
Acredito que tudo, quando deixar de ser um "negócio de milhões"  acaba. Por estranho que pareça (e não os coloco no lugar de vítimas nem lá perto) ponto de vista de onde vos escrevo, o que vejo de mais vulnerável é o lugar do domador, do treinador de orcas ou do forcado, gente que aprendeu e acredita que o seu lugar na história está certo, que quer fazer bem o seu "trabalho". Estes vão ficar "desempregados" porque muita gente em muitos anos comprou bilhetes e os fez acreditar e desenvolver uma profissão de forma digna que lhes alimentou os filhos e os brilhos da roupa. 

A sociedade muda em grupo, em conjunto. Quando deixar de haver público e curiosidade pelo exótico a coisa muda. Hoje os programas de televisão sobre vida selvagem, a informação, os livros, a internet democratizam acessos e conteúdos.
Por exemplo, hoje as viagens para observação de baleias superam o volume de negócio da captura e transformação de cetáceos nos Açores e atraem mais pessoas e pessoas diferentes. Por isso, mais do que um post que expõe o nome de um homem (e que eu republiquei), que o condena pela morte de três orcas talvez não seja muito justo. É possível que este homem tenha sentido profunda dor pela perda, tal como de uma pessoa amada (quem nunca chorou a morte de um animal de estimação que atire a primeira pedra). 
Somos nós, público que temos de mudar, temos de deixar de ver espetáculos que atentam contra os direitos humanos, os direitos dos animais e a exploração da natureza e a mim parece-me que não estão só nos circos ou nos aquários gigantes. Se os espetáculos com aberrações humanas terminaram, se a mulher de barba ou os jovens de duas cabeças já não ganham dinheiro em barraquinhas de pano com franjas significa que estamos a fazer caminho e que o que aí vem será melhor. Mesmo com a convicção de que somos especialistas em encontrar e explorar aberrações novas e injustas a cada tempo.
Estejamos atentos e aprendamos juntos.  

domingo, 23 de julho de 2023

Lugares que somos

Recebi uma mensagem via facebook de uma pessoa que fez parte das minhas turmas do sétimo e oitavo anos, sem memória de encontros posteriores. Reconheceu-me numa publicação de um evento em que participei mais de trinta anos depois de uma adolescência em que não cabíamos no corpo que vestia roupas demasiado largas.

Ontem à noite no Uber que me trouxe àquela que é, cada vez mais, a casa dos meus pais e menos a minha, tive uma surpresa sem medida. Sou conduzida pelo namorado recente de uma amiga que a meados nos anos 90 me emprestava os livros que eu devorava com prazer e de cuja biblioteca eu li todos os volumes das Brumas de Avalon, numa juventude em que sonhava ser adulta desejosa de sair das borbulhas e do invólucro desconhecido que não se ajustava a nada e no qual não me reconhecia.

Às vezes o passado encontra-nos sem nos darmos conta. E tal como os monstros ou os medos é bom olhá-lo frente.

E que alegria sinto em ouvir as histórias de vidas que se cruzaram num tempo longínquo e que agora se visitam tão diferentes, tão vividas, tão reais.

Cumprimos-nos neste hiato e voltamos às vidas uns dos outros para lembrar que neste caminho de alguma forma seguimos fiéis a alguns sonhos de infância, resistimos à adolescência e saímos da juventude inteiros para a vida. E que vida, e que voltas não imaginadas.

Talvez esteja a entrar no estágio anterior à velhice e o que vivi na primeira parte da vida situe esta terceira num lugar de consciência e paz quando a comparo com uma memória que não é nítida, não é fílmica, mas é de sensações, flash desconexos, como os sonhos.

Que alegria em recordar um amigo que me transmitia paz e que me fazia sentir vista, que alegria recordar uma amiga que me emprestava livros e que sendo mais velha, bonita e com quem aprendia pelo espanto, representava o que desejava ser num futuro que não acreditava que acontecesse. Aconteceu.

Sinto-me profundamente grata pelas memórias que agora construo, baseadas em factos reais. Pela escola cheia de luz e portas que davam para a rua, em cujas salas, alguém reparava que me sentava à frente com uma atenção mais madura que a idade.
Pela estação rodoviária de bancos de madeira castanha polida, cheiro a tubo de escape e de altifalantes fanhosos onde me cruzava com duas irmãs altas, uma loura e outra morena, que apanhando o mesmo autocarro, me faziam companhia com sorrisos e curiosidades literárias.

Vamos ao encontro do futuro e também caminhamos ao encontro do passado, ressignificando e editando, trazendo à memória e construindo a partir do lugar onde nos encontramos agora.
O lugar onde escolhemos ser nós mesmos, e naquele em que nos reconhecemos e temos o dom ou a graça de ser reconhecidos. Só nesse reconhecimento tem lugar o amor, tem lugar o futuro.

Como sempre escrevo para mim, para não me esquecer do que não consigo colocar em palavras e não me esquecer da emoção de encontrar e ter sido encontrada por um Jorge, um Bruno, uma Teresa, uma Cecília... que já não conheço, mas com quem me cruzei naquele lugar onde as coisas não mudam, que é o coração.
A esperança, também, começa aqui.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Pontos

Voltei a caminhar. Como gosto deste tempo em movimento. 

Gosto de olhar para os campos e identificar folhagem que será moldura de futuros girassóis, folhagem que é oxigénio para as batatas ou flores que se perpetuarão através de ervilhas ou favas. Quando reconheço uma planta pela folha é como me lembrar do nome de alguém conhecido. Dar nome às coisas é manter com elas laços e presença.

Gosto de sorrir para as pessoas partilhando desta forma a piada do podcast ou do áudio deixado pelas amigas, sabendo que entre quem emite o som, ou quem recebe o sorriso apenas existo eu. Vejo-me um ponto de intersecção de rectas divergentes e desconhecidas. Não seremos todos isso? Pontos de encontro do desconhecido.

Hoje voltei a caminhar e a sorrir às pessoas, consciente de que me quero habituar a apanhar sol e chuva em cinco quilómetros de passo acelerado, descobrindo a ilha que também sou.


#ilhaterceira



segunda-feira, 29 de maio de 2023

O meu crush musical do Verão


Sou deste tempo e sou feliz por isso. Este último disco do Pedro Mafama é um espanto e um encontro bom. Aquelas coisas que vês e desejas ser amiga de quem as faz, de quem as vive. Sou fã.

Ao ouvir o disco transporto-me para os bailes dos Meios, Trinta e Fernão Joanes no início dos anos 90... Um tempo em que era muito envergonhada, mas também muito curiosa o que é um paradoxo problemático de conjugar no modo adolescência. 

No meu caso estava no abismo e nunca dei o passo em frente, ao contrário deste disco que não tem medo de alturas. Obrigada Pedro.

#EstavaNoAbismoMasDeiUmPassoEmFrente
 

terça-feira, 25 de abril de 2023

Encontros

Ao cair do dia ponho em ordem as respostas por dar às mensagens digitais que pedem tempo e coração à pena, que é como quem diz ao teclado.
É bom ter espaço para poder partilhar sem distância com quem está longe. Uma evidência que é medida em quilómetros deixa de ser mensurável se medida com o coração.
Num destes dias procurei por algum tempo uma palavra que sintetizava o que tinha sentido num encontro recente com uma grande amiga. Por mais que procurasse não encontrei nas letras que tinha uma conjugação ajustada ao momento. Escrevi várias e assim seguiu a mensagem fiel ao sentir e ao momento. Adormeci agradecida.
Na manhã seguinte, ao me aperceber dos primeiros sinais de luz a entrarem pela janela e ainda no limbo dos sonhos que nos acordam para a vida, a palavra veio delicada e sorridente ter comigo. Retribuí o sorriso ao ver chegar sem esforço aquilo que poderia ter escrito no dia anterior.
A palavra era "comunhão" e foi ela que me encontrou adormecida e sonhadora naquela manhã de feriado.
Os nossos tempos talvez sejam balanceados entre este procurar sem preguiça e este deixarmo-nos encontrar sem medo.
Abandonarmo-nos à confiança do encontro pode ser um desafio neste tempo de produtividade e imediatismo, porque exige mais descanço e presença no sonho que força na vontade dos músculos.
Confio nos encontros.

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...