quarta-feira, 26 de junho de 2019

Tambores...


Estava numa conversa sobre as religiões de matriz africana, em especial do povo Bantu com origem na zona do Congo se desenvolveram, por exemplo em Cuba concretamente para a religião Palo Monte.
Uma conversa em Portugal, no centro de Lisboa, com cubanos, espanhóis, brasileiros, angolanos, guineenses, moçambicanos e curiosamente poucos portugueses. Porque é fundamental reconhecer e respeitar esta diversidade cultural e religiosa para acabar com todo o tipo de racismo religioso, linguistico ou musical, rapidamente.

Um dos músicos que lidera o encontro, começa por dizer que as religiões são criadas pelos homens, em função do seu "ecossistema", digo eu. Esta ideia faz todo o sentido para mim que sou religiosa e espiritual. Faço esta manifestação de interesse para que fique claro o ponto de vista de alguém que professa uma religião que é constituída por homens e mulheres profundamente machistas. 

Comungo a ideia de que a nossa mundividência determina a forma como vemos a materialidade e a imaterialidade das coisas e como construímos os nossos sistemas de crença ou de cepticismo.

A conversa decorreu em redor da música com percussionistas e cantores a demonstrarem de forma asséptica (porque não estávamos numa celebração) efeitos quase hipnóticos conseguidos no seu expoente máximo com a ajuda de ritmo, som, movimento, álcool e charutos. Percebo este universo de acesso ao transcendente, aos mortos e a nós próprios. 

Neste contexto liderado por homens surge a pergunta se as mulheres podiam tocar tambor nas cerimónias. A resposta é interessante, e começa por explicar que os tambores consagrados são habitados por um espírito que fala através do som que emite. O tambor toca porque o espírito fala e esta ideia de um som vivo, habitado que convive ou comunica com diferentes dimensões também faz sentido no meu cristianismo ocidental. Na sua essência é isto que procuro na música e é também isto que encontro nos diferentes géneros de que gosto. O acesso a um transcende sagrado ou profano conforme os "terreiros"...

A ideia romântica do tambor falar não faz confusão a quem estudou, em pequena, percussão ou fez há uns tempos um workshop com o método Molik.
O que eu não esta preparada era para ouvir a justificação que se seguiu, dizia o músico, que o espírito que habita o tambor não fala quando é uma mulher a percutir a pele. Pode até haver som mas não há fala. 
E não fala porquê? Ainda se aflorou o facto de as mulheres serem mais pequenas e mais fracas, mas alguém deve ter olhado para o lado e visto que a mulher que tinha juntado aquela gente ali era mais alta que os músicos que agora falavam e a justificação morreu também por falta de força. Ficou-se na razão das mulheres terem menstruação. 
Aquilo que permite a vida, a propagação da espécie... O sangue que todos os meses atesta a saúde sexual e reprodutiva ou o ritmo biológico da mulher deixa o espírito mudo.
Ora, se todas as religiões são feitas por homens e mulheres, já era tempo de eles dizerem ao espírito que a menstruação é uma coisa boa e que apenas acontece normalmente entre 30 a 40 dias por ano por isso podemos dizer que a maior parte do ano a mulher não tem o "corpo aberto". Em último recurso podemos dizer também ao espírito que, se a mulher tocar com o "corpo aberto", toda a comunidade se pode juntar para a proteger das forças do desconhecido e com isto criar coesão e respeito pela condição feminina e pelas mulheres que querem tocar.
O outro ponto é pensar que o espírito pode ser Mulher e que por isso percebe e apoia, esta sua "irmã" da terra, cíclica e musical.
Esta conversa, fez-me pensar, (sem estudos em antropologia nem no estudo das religiões e por isso consciente as minhas limitações académicas em relação ao tema), que as religiões tradicionais, que supostamente estão mais perto das pessoas (e são feitas por elas como todas as outras) deviam evoluir mais rapidamente e ser cada dia mais respeitadoras dos valores humanistas e por isso, no meu entender de justiça, mais justas. 
Imaginando que eu era cubana: Que o espírito não fale comigo que a custo próprio percebi que a percussão não é a minha praia, eu entendo, mas que não fale comigo porque sou mulher e menstruo, custa-me a aceitar mesmo sabendo que há dias em que as "regras" me exigem recolhimento e um saco de água quente, ou que a "lua" me baralha as ideias e me pede tudo menos ritmos e conversas. 


O meu desejo é que os tambores falem com todos o que desejam ser um bom veículo dessa comunicação. Sejam mulheres, homossexuais, gordos ou magros, crianças ou velhos. Este desejo não é de igualdade mas de justiça. Nem todos têm talento, nem todos tocam bem ou nem todos sabem escutar ou têm acesso ao desconhecido, porque somos todos diferentes. Que estas diferenças não nos encaixem em dogmas que nos roubam liberdade ou tão simplesmente a possibilidade de sermos cada dia mais conscientes, mais livres e mais felizes em sociedade e em unidade com tudo, o visível e o invisível.
Parece-me que esta é a forma de sermos a cada dia, mais fortes e mais parecidos com a Divindade.

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