sexta-feira, 7 de maio de 2021

Saltinho

Estava perto da nascente do rio, subira até lá à procura das alturas e das águas frescas.

O jantar foi canja de pombo caçado na manhã daquele dia. A panela, onde boiavam bolinhas pequeninas de massa, deu sentido ao desporto que a incoerência de comer carne não percebe.
A meio da refeição o gerador falhou e o resto da noite foi iluminada por pequenas lanternas que os caçadores traziam consigo.
Quando chegou ao quarto acendeu a vela para lavar os dentes e encontrar no espelho o sorriso de um dia passado dentro de água. Imaginou-se filha de Egbá ou de Yemajá, gerada nos buracos das rochas daquele lugar, parida para a vida naqueles rápidos que hão-de chegar à imensidão do mar. Expulsa pela força da gravidade e pela urgência de se fazer grande.
Calhou-lhe em sorte um colchão de molas que ela sentia na pele com tanto vigor que dáva para questionar se alguma vez teria havido fibra a proteger do corpo o metal. Talvez uma cama de pregos fosse mais dura e lisa, mas esta servia para a fazer acreditar que podia ser filha de um mestre faquir a viver na Índia em vez de na África Ocidental.
Sem eletricidade e sem ar condicionado a noite parecia ainda mais escura e quente do que era na realidade.
Depois de certificar que as janelas estavam abertas e protegidas por rede deitou a cabeça na almofada macia que ampliava o contraste da irregularidade do leito.
Pensou nas avaliações relativas da vida, na forma como as comparações dependem dos objetos comparados, de como as circunstâncias condicionam o indivíduo, de como a moralidade serve para controlar um grupo dando-lhe pertença e sentido. Pensou em como o mérito parece ter sido uma invenção de sociedades que se preocupam mais com o poder e com o dinheiro que com a justiça. Buscáva uma definição de fecundidade no chão e não na filosofia... Assim não a encontraria.
Não foi por mérito que nasceu mulher num país de escolaridade obrigatória, onde pensa que pôde fazer escolhas. Não foi por mérito que cresceu numa família que lhe acolheu os sonhos de voar e amparou as quedas.
Não foi por mérito que perdeu um amor que não lhe servia, como não foi por mérito que encontrou outro amor, na medida certa do tempo e espaço em que se tornara. Em breve estariam juntos e era, com essa ideia, que se tapava naquela noite. Afinal não precisava de muita coisa para se sentir confortável e não havia nada no futuro que lhe metesse medo.

Saltinho, Rio Corubal na Guiné-Bissau Maio 2021


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