segunda-feira, 29 de maio de 2017

Desolhar...


Estava eu à procura de um sinónimo para uma palavra difícil e logo dou com os olhos na palavra desolhar.
Que palavra estranha e que estranheza bonita...
Eu posso tirar os olhos a alguém ou a alguma coisa, e no mesmo termo, esforçar-me para ver melhor e mais longe. É o paradoxo do que somos.
"Vale tudo menos tirar olhos" dizíamos nós nas brincadeiras quando éramos mais pequenos, e podíamos dizer se soubéssemos esta palavra, ou não pensássemos que estávamos errados "vale tudo menos desolhar" sem sabermos que às vezes, tirar olhos, ajuda ao desenvolvimento. 
Desolhar parece que faz parte da família de desdescer ou des-subir que são palavras que não existem ainda, mas que podem vir a existir integrando o universo da palavra descobrir.



de·so·lhar 
(des- + olho + -ar)
verbo transitivo
1. Tirar os olhos a.
2. Suprimir botões florais ou foliaresgeralmente para que a planta  melhores frutos e tenha melhor desenvolvimento.
3. [Brasil]  Tirar o mau-olhado de.
verbo pronominal
4. Esforçar-se ou esbugalhar os olhos para ver alguma coisa (ex.: desolhava-se para ver o palco).


"desolhar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/desolhar [consultado em 26-05-2017].

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Noite...

Vivo numa casa com varanda. Uma varanda que dá para a rua perpendicular à rua principal, com nome de músico, mesmo que ninguém saiba isso! 
Vivo numa casa que faz esquina com a rua principal em asfalto, que dá para uma rua desnivelada de terra batida que é o acesso a todas as casas que se encontram à minha esquerda e à minha frente. 
Mais ou menos a meio, no lado oposto à minha varanda, há um poço que serve as casas que não têm água canalizada.
No lado de fora do meu muro há um poste de luz amarela que me doura as noites quando me sento sozinha na varanda protegida dos mosquitos por uma rede fina. E como gosto deste momento de solidão nocturna a admirar o mundo que fervilha aqui à volta. Pode estar-se em silêncio com tantos barulhos à volta? Sim pode.
Passa uma aragem que alivia o calor dos dias e torna tudo mais leve e nítido na noite.
Os sons são muitos, parece barulho... Mas se atentar melhor, se me calar por dentro, consigo ver outras realidades sonoras que já não entram no espectro do ruído mas numa outra dimensão que não sei agora nomear.  
Ouve-se constantemente música, umas vezes baladas lamechas, umas vezes quizomba entre um solo de saxofone e uma canção da moda. Há canções que se repetem... E o som integra-se perfeitamente na "paisagem" que pinto de olhos fechados. Ou porque me habituei ou porque de facto assim acontece... a fronteira é tão ténue.
Ouço vozes de crianças a brincarem empolgadas, alguns gritos de espanto outros de raiva. Ouço amigos que fazem festa no bar da esquina, gente que passa falando alto, gente que ri num lado, gente que ralha e não sei se estão a 2 se a 20 metros, porque a noite tem esta magia de nos trazer sons sem referência das distâncias.
Os carros passam na rua José Carlos Schwarz a diferentes ritmos, como que a integrar a secção rítmica de uma orquestra moderna, com diferentes tilintares de chapa, roncares de motores, alguma travagem bruta, buzinas, cargas que se movem em "caixas abertas" de camionetas que contornam buracos. Imagino um arrastar de vento em forma de v que se vai esfumando no ar à medida que os veículos de afastam. E ouço também portas de carro que batem algures, como que se dum berimbau lento se tratasse.
O Jó, o nosso segurança, faz as suas lições de Português e lê em voz alta o seu livro da escola, numa língua que tenho dificuldade em reconhecer como minha. Rendo-me a este esforço de aprender e a este som de quem repete mecanicamente um desejo profundo. Este o primeiro passo para o conhecimento... 
Há movimento nas casas em frente, um movimento tranquilo de quem aprecia a noite como eu e se senta nas suas cadeiras de plástico a conversar e a apanhar "uma calma" como se diz no Alentejo, afinal somos todos muito mais parecidos do que parece.
Passam pessoas à minha frente, do outro lado do muro, rua acima, rua abaixo, e ao ver estes movimentos falta-me alguma coisa, percebo que a imagem não está de acordo com o som e imagino que não tenha colocado correctamente o jack nas colunas... Parece que flutuam, como que, se no meio daqueles sons todos, a rua fosse habitada apenas por espíritos, porque lhes falta o som dos passos no caminho que fazem à minha frente.
Falta-me o som dos passos, e contudo aos passos não falta nada, nesta realidade imaterial que eu escrevo para tornar mais concreta em mim.
O outro lado de enraizar é o flutuar, como a música. Os dois são precisos. E o som dos passos aqui, afinal, não faz falta nenhuma. 

Só uma nota para não me esquecer: a semana passada o Presidente da República passou por aqui e por isso taparam os buracos na estrada de asfalto que todos os anos fica ferida pelas chuvas e este ano não tinha visto ainda cura. Sabem o que isso significa? Significa que eu já não acordo de noite com o barulho das galeras dos camiões a saltarem por cima das crateras brutais e a caírem como morteiros. Significa que já nem me dou conta que tenho uma janela virada para a estrada. Significa que já nem me lembro dos buracos que por aqui havia porque deixaram de fazer barulho...





terça-feira, 16 de maio de 2017

Casas de banho...

Entrei numa casa de banho pública, na verdade na casa de banho de um centro comercial no centro de Lisboa.
Ao entrar já uma senhora, em frente ao espelho, olhava para dentro da carteira colocada em cima do lavatório.
Entrei num cubículo ao lado de um outro cuja maçaneta segurava um casaco aos quadrados que seria daquela senhora, fechei a porta e quando saí a mesma senhora continuava a procurar algo na sua carteira, como se de um poço sem fundo se tratasse. Olhei para ela e sorri enquanto lavava as mãos.
O reboliço estava instalado, as suas carteirinhas, lenços e um caderninho de argolas, usadíssimos e enrodilhados, ocuparam os lavatórios vizinhos... E ela continuava à procura.
De repente como que vencida, mas tranquila, suspira e diz para mim: 
- Está no casaco.
Rimos as duas, quando ela encontra o pentinho preto no bolso do casaco pendurado na porta atrás de nós.
De volta ao espelho diz-me enquanto se penteia. 
- Isto é um vício que eu tenho... Lavar as mãos e pentear o cabelo, principalmente em casas de banho boas e bonitas como esta. O meu filho diz que eu tenho cabelo de rato e é verdade... Fraquinho e fininho que mal se vê, mas que quer? Ele diz que, se não pentear até fica com mais volume. E é verdade...
Eu sorri enquanto secava as mãos com papel higiênico, sim, porque as máquinas de secar as mãos são as coisas mais anti-sociais que conheço nas casas de banho. Aprecio por demais a privacidade do meu cubículo com sanita que posso fechar e abomino as máquinas de secar as mãos, mas isso é outra história....
Continuando... Depois peguei no meu baton, como que a fazer companhia àquele ritual de beleza capilar sem dizer uma palavra e concordando com a opinião do seu filho. Aquele pente destruía agora, qualquer pretensão de volume naqueles finos fios cinzentos.
Só me ri e desejei-lhe um bom dia ao arrumar o baton.
A senhora agradeceu e respondeu:
- Muito obrigada por ter estado comigo. Pelo seu sorriso. Que Deus lhe dê o dobro do que me deseja. 
E eu saí a pensar que conscientemente não desejei nada à senhora, apenas estive... E que o dobro de nada é nada... 
Mas se estar ali com ela aqueles momentos... Estar sem pensar em nada, só estar presente e prazerosamente. Se a acompanhar na busca do pente perdido, foi um momento de relação e empatia, então talvez Deus me dê em dobro, encontros, tempos, sintonias e silêncios que confortam... Em todo o caso, e mesmo que este acto não tenha rentabilidade futura na caderneta de pontos das boas obras, já recebi humildemente nesta casa de banho a gratidão de uma desconhecida, a generosidade dos votos, a gratuidade dos encontros que não se programam e não se voltam a repetir. 
A gratuidade e a fecundidade dos encontros são das coisas mais mágicas da vida e tantas vezes os perdemos no barulho das máquinas de secar as mãos ou na preguiça de gestos de "ficar"... E no fim de contas perdemos o que verdadeiramente nos embeleza a cara. Eu, pelo menos, tenho a certeza que saí mais bonita daquela casa de banho e não foi só por usar o baton que me deu a Stina.

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...