segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Perder

Fui a dois velórios no mesmo dia. Perto da morte, sentei-me numa explanada quase deserta. Apenas um senhor idoso de gravata preta tomava uma cerveja a um canto. Reparei nele quando entrei e olhava-o de costas com a sensação que se distraía com o movimento da rua sem que alterasse a sua imponente calma de octogenário.

Quando se levantou para levar o copo e a garrafa ao balcão, passou por mim, olhou-me e perguntou-me uma coisa sobre o velório do qual tinha saído. Era curioso e atento este senhor de olhar meigo. Sorri-lhe sem máscara que o carioca de limão, a vitamina C e uma mesa ao ar livre permitem algum arejamento, e a conversa foi surgindo.

Estava ali porque às 19h haveria missa por alma da sua mulher falecida há quatro anos, os filhos estariam a chegar.
Os olhos daquele homem compacto, vestido em contraste dramático, camisa branca, gravata preta de nó largo e bem feito, casaco cinza escuro e calças vincadas, amendoaram-se para exprimir uma saudade sem tamanho.
Era um homem robusto, arredondado pelo tempo como os seixos rolados de grandes pedras graníticas que descem a serra desejando um mar maior... Devia ter sido um homem de um tamanho diferente daquele que me olhava naquele momento em que me contava que estiveram casados 64 anos. No meio da conversa rápida as duas ideias repetidas eram: não me conformo ter perdido a minha mulher, era uma mulher extraordinária.
Encheram-se-me os olhos de água e apeteceu-me abraçar aquele homem em forma de rocha perto da foz. O efeito da erosão da vida é impressionante.
Estávamos os dois emocionados e o senhor atrapalhado ou surpreendido por aquele momento que a ambos tocou a alma afastou-se com a garrafa e o copo nas mãos.
Quando voltou a passar olhou-me nos olhos e pediu desculpa timidamente. Desculpava-se por aquele amor fecundo? Por aquele expressão de vulnerabilidade perante uma desconhecida?
Não há nada para desculpar, apenas para agradecer a beleza da partilha de um amor que nunca acaba.
Quando ele seguiu o seu caminho deixou-me a pensar na primeira expressão que ele usou para dizer que a mulher tinha morrido. Ele disse "perdi a minha mulher há quatro anos".
Não foi ela que o deixou, não foi ela que partiu, foi ele que a perdeu. A ação está nele e não no ente amado. Ele continua a procurá-la, ele continua a desejar encontrar a sua mulher. Há neste perder um desalento e uma responsabilidade... Será que ele se pergunta: Que poderia ter feito para não a perder? Não sei.
Fiquei a desejar que ele a encontre de alguma maneira, e que a saudade que sente há quatro anos possa ser cada dia mais leve para aqueles passos cansados que se arrastam em direção à igreja.
Talvez porque nos percamos de bom grado no amor, perder quem amamos é a dor mais profunda da todas. Talvez por isso muitos de nós, nunca se venham a perder e nunca venham a (re)conhecer pessoas extraordinárias como a mulher deste desconhecido que, sem saber, me tocou o coração e me fez acreditar no amor.

25 de abril! Sempre!

Uma amiga que vai descer a avenida da Liberdade daqui a pouco e não é de missas, convidou-me para uma missa. Encontrando um padre amigo numa...