terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Tabancas...


Nas tabancas (assim se chamam as aldeias, os povoados na Guiné-Bissau) ao anoitecer começa uma outra vida, ou a vida continua de forma ainda mais surpreendente para mim.
Não há eletricidade. A luz vê-se na boca ou na mão das pessoas que transportam telemóveis, lanternas solares ou a pilhas que lhes iluminam os passos ou os cumprimentos.
A tabanca é salpicada por pequenas fogueiras. O fogão de cada um está à vista de todos. Sobre a terra batida, três pedras grandes suportam uma panela preta por fora onde fervilha algo aquecido pelo fogo que crepita dos paus que se arrumam entre as pedras.
Também há quem transporte cinzas em pequenas rodelas de metal que antes foram fundos de latas de vinte ou trinta litros de qualquer coisa. Para que elas se asse alguma coisa mais perto da porta e se evite o fumo com que se faz o carvão, imagino eu ao passar.
A esta hora do dia também se vê crianças a tomar banho. Os maiorzinhos lavam-se sozinhos em frente às casas tendo como apoio um balde, de plástico ou de metal, um género de esponja que mais parece uma rede de pesca. Os mais pequenos são esfregados por uma mulher que na minha passagem fortuita, rápida e tímida, não consigo adivinhar se é a mãe, mas se não é cuida como tal. 
Ninguém comerá sentado à mesa. Não haverá pratos ou copos e tudo estará perfeito depois da nossa passagem. 
Passar por esta terra batida e varrida é um privilégio. Sentir o ritmo a esta hora da noite uma coisa quase mágica. Sair sem interferir nele (sem uma única fotografia), uma grande alegria. Afinal há coisas que são perfeitas por natureza e só precisam de um lugar no coração para nos habitarem para sempre.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Caos...

Aprendo muito com os cheiros, a luz, a humidade e o caos da floresta.
A natureza é uma grande escola...
O que me surpreende é que não é a "casa" arrumada, limpa e ordenada que todos os dias busco, ou a visão minimalista com que habituei os olhos ao belo.
As lianas que se unem para "derrubar" aquela que as acolhe, e é maior que elas, que parecendo mais forte, sucumbe ao peso de quem acolheu com generosidade.
A luz que é roubada pelos mais fortes e grandes, aos mais pequenos e frágeis.
Aqui também o sentido de justiça é diferente do que imagino como certo.
A floresta é caótica, aleatória e cheia de contradições. Não é um jardim renascentista, é a possibilidade de renascer do caos e isso toca-me tão fundo que me apetece abraçar os troncos que apodrecem no meu caminho... As florestas sem caminhos são um mistério que quero percorrer dentro de mim. Sem medo de me perder. Sem idealizações.

Em sonhos imagino-me a abandonar as florestas das árvores do "bem e do mal" e encontrar mais à frente as árvores da vida, que se envolvem, morrem e nascem, nascem e morrem no/do caos a que pertenço.





quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Password...

Hoje a vizinha da frente veio cumprimentar-me com dois beijos!
Os pais acenaram no outro lado da estrada num cumprimento efusivo.
Perguntei-lhe pela escola, e não havia mais nada para perguntar... A única vez que conversámos foi quando me veio pedir a password da internet para poder fazer um trabalho da escola. Entregou-me o telemóvel para que nele eu escrevesse a palavra secreta (e assim continuasse).
Questionei-me com estas modernices, de agora até os trabalhos da escola poderem ser feitos através de rudimentares smartphones, num sítio em que a mensalidade da internet é igual ao ordenado de um professor.
Claro que sei que aprendemos muito com as redes sociais, que o Facebook, Messenger, Whatsapp podem ser uma boa escola da vida.
Fico feliz e espantada com o acesso caloroso que 6 números e 3 letras me possibilitam. 
Para a próxima, em vez de lhe perguntar pelas aulas estou a pensar em perguntar-lhe pelos amigos. Será abusivo? 






domingo, 5 de fevereiro de 2017

Chimpanzés...

O som dos chimpanzés numa noite escura, em selva desconhecida, dá-lhes mais dois metros e uma agressividade inimaginável. 
A escuridão e o desconhecido dão ao som a dimensão dos nossos medos.
O mesmo som, com luz e a olhar para os chimpanzés a saltar de árvore em árvore, ganha contornos completamente diferentes e maravilhosamente doces.
A realidade não depende da realidade....

Avançar na escuridão no Mato de Lautende, para encontrar um sítio seguro onde possamos esperar sentados que a noite se vá deitar. Ver nascer o dia ao som de insectos e de barulhentos pássaros viajantes. Ser apresentada a Coopeaferasalicundas, Albizias, Pau de Veludo ou Poilões gigantes. E depois sentir os belos chimpanzés acordarem, fazerem chichi e cocó, saltarem para as árvores, comerem mamp'tass, arreliarem os colombos e moverem-se com graça perante as diferentes flexibilidades das árvores e palmeiras que lhes servem de ninho, alimento e diversão. 
Estar inteiros na dimensão do respeito (e da distância) que nos faz espectadores de uma mágica realidade, que não é nossa, e onde não devemos intervir. Só estar com (e em) todos os sentidos.



@Nacho Morales (Nadju)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Táxi...

20h00 - Quero apanhar um táxi, ao meu sinal param todos e nenhum vai para onde quero ir.
Passados quinze minutos (e quinze minutos à beira de uma estrada é uma eternidade), "nó bai" entro para o banco da frente de um táxi vazio.
-Sabe, ninguém quer ir para a Praça a esta hora, por causa do engarrafamento. Muito movimento… muito tempo. Vê? Aponta para os carros parados lá ao fundo enquanto procura passageiros que queiram entrar nesta espera onde agora estamos juntos. Todos se podem juntar à espera, e contudo ninguém entra.
A maior parte das pessoas que nos fazem parar querem ir para Antula.
- Para Antula ainda é pior, uma hora de tempo ou mais. A esta hora ninguém quer ir para lá. Fica o tempo todo no trânsito. “Antula ká bai” ouvem resignados os candidatos a transporte, com cara de quem já espera há mais tempo do que eu.
As ruas estão cheias de gente, o taxista aponta para os magotes de pessoas que esperam o toca-toca… E lá vai dizendo que não há dinheiro e que as pessoas não podem andar de táxi, muitas vão a pé porque não têm dinheiro e que há poucos transportes… Sendo que eu me vejo metida no caótico trânsito da Chapa em hora de ponta e não me parece nada pouco.
Volta a insistir que não há dinheiro e há minha volta, mesmo aqui à beira da estrada e à vista de todos o mercado da "fuca" está cheio de gente a pegar e largar, lanternas a apontar os artigos, pregões a chamar os fregueses. Então explique-me por favor o que está esta gente toda na rua a fazer?
- Hummmm… vem comprar sapatos. Mil francos, dois mil francos. Mas não há dinheiro.
- Pelos vistos não há dinheiro em lado nenhum, (digo para o ar, sem esperar resposta).
O taxista boceja violentamente, esfrega a cara, mexe-se no lugar e eu pergunto:
-A que hora começou a trabalhar?
-As cinco da manhã. Estou no táxi desde as cinco da manhã e ainda não comi nada. Apenas aquela fruta pequena, mancarra e assim… Está difícil.
Eu fico com os meus botões a pensar na falta de táxis num país com trânsito caótico, na compra massiva de sapatos num país onde a maioria anda de chinelos, na falta de comida de quem trabalha de sol a sol, e a justificação do taxista não se arruma imediatamente na minha cabeça, claro que não vou questionar, vou dizer que sim com a cabeça e sorrir, afinal os taxistas não têm de ser especialistas em todas as matérias e esta parece-me complexa.
- O troco é "pa bo", digo eu no meu melhor crioulo (que é uma nódoa), ao sair do carro…

Sigo caminho pesando que talvez gaste neste simples jantar de "estrangeiro", para onde me dirijo, o que ele, alimentado por mancarra, levará duas semanas a juntar… E isto também não se arruma imediatamente na minha cabeça, e nem digo que sim, nem me sorrio. Esta é mesmo uma realidade muito complexa e o problema não estão nos chocos grelhados com salada que me esperam, mas sim no tão pouco que alguns ganham nestes mundos de diferenças abissais entre as pessoas. 
Os problemas complexos de que fala Rui Marques, em conversas que inspiram a caminhos colaborativos, sem a presunção de os resolver imediatamente. Treina-se a humildade e clareza de os desenhar para que por cima deles se invente um novo mapa ajustado e tranquilo, que nos fará chegar juntos e por estradas movimentadas, a novos e justos horizontes. "Nó bai".



Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...