segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Baratas…

Matar uma barata é algo violento para mim, imaginem para a barata.
Quando estou acompanhada a coisa fica mais fácil porque eu posso gritar, saltar um pouquinho, esconder-me naquele ar feminino e sensível que também é meu, e há sempre alguém mais forte que avança e trata do assunto. Quando eu estou com alguém que tem a sorte de começar com este estardalhaço primeiro, aí sim, eu tenho de assumir o papel do mais forte a acabar implacavelmente e impecavelmente com o assunto.
A vida tende sempre para um cinza médio, nós estamos no meio e ajustamo-nos… Se há alguém mais fraco nós somos mais fortes… E vice-versa… Uma das graças da vida é a de estamos sempre rodeados de pessoas diferentes, o que faz com que para uns sejamos fortes e para outros sejamos fracos. Uns protegemos e outros protegem-nos. Não sei como é com as baratas.
Quando estamos sozinhos e principalmente quando me encontro sozinha com uma barata… Enfim, a coisa complica, e ainda assim assumo que eu sou a mais forte e uso do meu poder.
Faço aquele gesto nervoso de "não sei se vou, não sei se fico”… ai que tenho de ser rápida, ai que é agora… tiro o chinelo faço pontaria, dou grito abafado, fecho um olho e lá vai. Crrrraaaaccc!!! Um som seco de algo estaladiço a esborrachar.


Bom, o pior que pode acontecer, e garanto que acontece, é a barata fugir para baixo de alguma coisa que depois de afastada não a mostra. Aqui imagino que ela é a encarnação do Houdini, sabendo como se libertar no último momento, e calço o chinelo, afinal "o que os olhos não vêm o coração não sente" e neste caso é mesmo verdade, ou pelo menos faço por isso.

Consumado o acto chegam as consequências… O primeiro passo é ir buscar outros chinelos. O segundo é imaginar que por artes mágicas o cadáver, entre o chão e a sola, subirá ao céu em corpo e alma e lá provará os prazeres do paraíso que tantas vezes adiou aqui na terra. O outro passo importante no imediato para superar o choque é não pensar mais no assunto e fingir que nada daquilo aconteceu. Até voltar a passar no corredor e ver o chinelo no mesmo sítio. Imagino que, não o ver seria ainda mais estranho, mas isso nunca me aconteceu. Dez vezes depois, entre beber água e ir à casa de banho, sou obrigada a tomar uma atitude, penso que não tenho 7 anos, que a barata (e felizmente o chinelo) não vai desaparecer e eu terei de enfrentar o assassinato que conscientemente perpetrei (talvez não entre na categoria de premeditação, mas sim de azar… É estar no sitio errado há hora errada, tanto para quem mata como para quem morre).

E lá vou buscar a vassoura e a pá e faço o cortejo fúnebre até ao caixote do lixo, séria, serena e rápida. Penso que "já está" e "já passou", penso no Kafka, por alguns instantes não penso em nada. No fundo desejo que este momento não se repita.
Será que é esta a atitude que temos sempre que damos de cara com a morte, quando matamos algo em nós?


NOTA: Por razões óbvias este texto não tem imagens.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...