Matar uma barata é algo violento para mim, imaginem para a
barata.
Quando estou acompanhada a coisa fica mais fácil porque eu
posso gritar, saltar um pouquinho, esconder-me naquele ar feminino e sensível que também é meu, e há
sempre alguém mais forte que avança e trata do assunto. Quando eu estou com
alguém que tem a sorte de começar com este estardalhaço primeiro, aí sim, eu
tenho de assumir o papel do mais forte a acabar implacavelmente e impecavelmente
com o assunto.
A vida tende sempre para um cinza médio, nós estamos no meio
e ajustamo-nos… Se há alguém mais fraco nós somos mais fortes… E vice-versa… Uma das graças da vida é a de estamos sempre rodeados de pessoas diferentes, o que faz com que para uns sejamos fortes e para outros sejamos fracos. Uns protegemos e outros protegem-nos. Não
sei como é com as baratas.
Quando estamos sozinhos e principalmente quando me encontro
sozinha com uma barata… Enfim, a coisa complica, e ainda assim assumo que eu sou a mais forte e uso do meu poder.
Faço aquele gesto nervoso de "não sei se vou, não sei se
fico”… ai que tenho de ser rápida, ai que é agora… tiro o chinelo faço pontaria, dou grito abafado, fecho um olho e lá vai. Crrrraaaaccc!!! Um som seco de algo estaladiço a esborrachar.
Bom, o pior que pode acontecer, e garanto que acontece, é a barata fugir para baixo de alguma coisa que depois de afastada não a mostra. Aqui imagino que ela é a encarnação do Houdini, sabendo como se libertar no último momento, e calço o chinelo, afinal "o que os olhos não vêm o coração não sente" e neste caso é mesmo verdade, ou pelo menos faço por isso.
Consumado o acto chegam as consequências… O primeiro passo é ir buscar outros
chinelos. O segundo é imaginar que por artes mágicas o cadáver, entre o chão e a
sola, subirá ao céu em corpo e alma e lá provará os prazeres do paraíso que
tantas vezes adiou aqui na terra. O outro passo importante no imediato para superar o choque é não pensar mais no
assunto e fingir que nada daquilo aconteceu. Até voltar a passar no corredor e ver o chinelo no mesmo
sítio. Imagino que, não o ver seria ainda mais estranho, mas isso nunca me
aconteceu. Dez vezes depois, entre beber água e ir à casa de banho, sou obrigada
a tomar uma atitude, penso que não tenho 7 anos, que a barata (e felizmente o chinelo) não vai
desaparecer e eu terei de enfrentar o assassinato que conscientemente perpetrei
(talvez não entre na categoria de premeditação, mas sim de azar… É estar no
sitio errado há hora errada, tanto para quem mata como para quem morre).
E lá vou buscar a vassoura e a pá e faço o cortejo fúnebre até
ao caixote do lixo, séria, serena e rápida. Penso que "já está" e "já passou",
penso no Kafka, por alguns instantes não penso em nada. No fundo desejo que este momento não se repita.
Será que é esta a atitude que temos sempre que damos de cara com a morte, quando matamos algo em nós?
NOTA: Por razões óbvias este texto não tem imagens.
Sem comentários:
Enviar um comentário