quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Cinema...

Entrei num cinema abandonado... Um cinema à porta do qual passo quase todos os dias, ao lado do qual já bebi muitas cervejas e "caipirinhas" e onde como a melhor maionese de alho do mundo, transportada em "espetadinhas" de porco ou batas fritas que na penumbra da noite me parecem um manjar dos deuses. Em qualquer outro sitio esta comida seria uma sensaboria, aqui é prazer, acompanhado com molho de malagueta e limão.
Há poucos dias, no caminho de casa, ganhei coragem e entrei num espaço privado sem ser convidada, sem ser acompanhada por ninguém, sem nenhum tipo de legitimidade que não fosse a minha curiosidade. Às vezes precisamos de muitos gestos repetidos por fora para tomarmos coragem para entrar no desconhecido...
Atravessei a porta aberta com a timidez que combato todos os dias, pragmática nos gestos e atenção nos sentidos.
Entrei primeiro numa antecâmara de tecto baixo e chão em mosaico de pedra, sete passos e três degraus depois estava de baixo do balcão de um cinema antigo. Passava o balcão e o tecto abria-se como se de um carro descapotável estivesse-me a falar. Apenas a metade da sala em direcção à tela tinha a estrutura coberta de telhas. O palco mantinha estendida uma tela branca com alguns rasgões como se a chuva nunca por ali tivesse importunado o tempo e apenas regasse a vegetação amante de cinema e vestidos com corte de princesa. Sentia-me a entrar numa cena do realismo fantástico sul americano e imagino-me ser uma personagem do Gabriel Garcia Marques ou da Isabel Allende encontrando poderes inatos e desconhecidos em mim.
Mas estou em África, numa África que não é assim tão una, estou na Africa Ocidental e nela, numa antiga colónia Portuguesa que hoje é um país jovem que se chama Guiné-Bissau.
À minha frente tinha um senhor que acabava de comer arroz com um molho que não identifiquei e me acolheu com os olhos. Deixou-me passar a proteção do balcão, pisar "céu aberto" e disse-me com a mão que podia entrar.
O espaço era definitivamente mais dele que meu e este acolhimento deu-me segurança aos passos e ânimo para o circular, pegar no telemóvel e fotografar. 
Passeava a minha personagem. Nestas alturas não me apetece falar, entro num espaço sem tempo e fico nele a gravitar desejando conhecer com os sentidos as histórias dos musgos, das manchas, dos buracos... E nisto dou de caras com o meu "anfitrião" que me diz: foi o 7 de Junho. 
Fico mais atenta e ele repete, 7 de Junho de 1998, com os olhos postos nas nuvens que se veem daqui.
É a única coisa que ele tem para me dizer, foi a guerra.
A única coisa que eu penso é que foi um cinema. 
O gesto que ele faz mostra bombas a cair, os passos que eu dou mostram cadeiras e imaginam pessoas de cores pastel sentadas a ver o Casablanca.
Como faz parte de mim, sorri-lhe, agradeci-lhe com os olhos, e usei as únicas palavras que me pareceram ajustadas para o momento, obrigada e boa tarde. Olhava para ele e pensava que estávamos os dois no mesmo sítio ao mesmo tempo e ambos víamos coisas diferentes.  Segui o meu caminho de volta à rua que me levaria a casa naquele fim de dia. 
Hoje não há nenhuma sala de cinema em Bissau, não há nenhuma tela estendida e sem rasgões e isso faz-me muita falta. O que imaginei daquele encontro com um desconhecido, é que para ele, a realidade é que hoje não há guerra em Bissau e que isso não lhe faz falta nenhuma.




2 comentários:

  1. Que bonito! As tuas palavras fizeram-me sentir como se estivesse lá contigo e comecei a imaginar o que poderia ser feito naquele espaço! Que bom ler-te!

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    1. Obrigada :-)
      Se partilho algumas coisas do que escrevo é mesmo para isso, para fazermos juntos este caminho. Muito grata pela possibilidade de caminharmos lado a lado! Tudo de bom!

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