Há poucos dias, no caminho de casa, ganhei coragem e entrei num espaço privado sem ser convidada, sem ser acompanhada por ninguém, sem nenhum tipo de legitimidade que não fosse a minha curiosidade. Às vezes precisamos de muitos gestos repetidos por fora para tomarmos coragem para entrar no desconhecido...
Atravessei a porta aberta com a timidez que combato todos os dias, pragmática nos gestos e atenção nos sentidos.
Entrei primeiro numa antecâmara de tecto baixo e chão em mosaico de pedra, sete passos e três degraus depois estava de baixo do balcão de um cinema antigo. Passava o balcão e o tecto abria-se como se de um carro descapotável estivesse-me a falar. Apenas a metade da sala em direcção à tela tinha a estrutura coberta de telhas. O palco mantinha estendida uma tela branca com alguns rasgões como se a chuva nunca por ali tivesse importunado o tempo e apenas regasse a vegetação amante de cinema e vestidos com corte de princesa. Sentia-me a entrar numa cena do realismo fantástico sul americano e imagino-me ser uma personagem do Gabriel Garcia Marques ou da Isabel Allende encontrando poderes inatos e desconhecidos em mim.
Mas estou em África, numa África que não é assim tão una, estou na Africa Ocidental e nela, numa antiga colónia Portuguesa que hoje é um país jovem que se chama Guiné-Bissau.
À minha frente tinha um senhor que acabava de comer arroz com um molho que não identifiquei e me acolheu com os olhos. Deixou-me passar a proteção do balcão, pisar "céu aberto" e disse-me com a mão que podia entrar.
O espaço era definitivamente mais dele que meu e este acolhimento deu-me segurança aos passos e ânimo para o circular, pegar no telemóvel e fotografar.
Passeava a minha personagem. Nestas alturas não me apetece falar, entro num espaço sem tempo e fico nele a gravitar desejando conhecer com os sentidos as histórias dos musgos, das manchas, dos buracos... E nisto dou de caras com o meu "anfitrião" que me diz: foi o 7 de Junho.
Fico mais atenta e ele repete, 7 de Junho de 1998, com os olhos postos nas nuvens que se veem daqui.
É a única coisa que ele tem para me dizer, foi a guerra.
A única coisa que eu penso é que foi um cinema.
O gesto que ele faz mostra bombas a cair, os passos que eu dou mostram cadeiras e imaginam pessoas de cores pastel sentadas a ver o Casablanca.
Como faz parte de mim, sorri-lhe, agradeci-lhe com os olhos, e usei as únicas palavras que me pareceram ajustadas para o momento, obrigada e boa tarde. Olhava para ele e pensava que estávamos os dois no mesmo sítio ao mesmo tempo e ambos víamos coisas diferentes. Segui o meu caminho de volta à rua que me levaria a casa naquele fim de dia.
Hoje não há nenhuma sala de cinema em Bissau, não há nenhuma tela estendida e sem rasgões e isso faz-me muita falta. O que imaginei daquele encontro com um desconhecido, é que para ele, a realidade é que hoje não há guerra em Bissau e que isso não lhe faz falta nenhuma.
Que bonito! As tuas palavras fizeram-me sentir como se estivesse lá contigo e comecei a imaginar o que poderia ser feito naquele espaço! Que bom ler-te!
ResponderEliminarObrigada :-)
EliminarSe partilho algumas coisas do que escrevo é mesmo para isso, para fazermos juntos este caminho. Muito grata pela possibilidade de caminharmos lado a lado! Tudo de bom!