Fui a dois velórios no mesmo dia. Perto da morte, sentei-me numa explanada quase deserta. Apenas um senhor idoso de gravata preta tomava uma cerveja a um canto. Reparei nele quando entrei e olhava-o de costas com a sensação que se distraía com o movimento da rua sem que alterasse a sua imponente calma de octogenário.
Quando se levantou para levar o copo e a garrafa ao balcão, passou por mim, olhou-me e perguntou-me uma coisa sobre o velório do qual tinha saído. Era curioso e atento este senhor de olhar meigo. Sorri-lhe sem máscara que o carioca de limão, a vitamina C e uma mesa ao ar livre permitem algum arejamento, e a conversa foi surgindo.
Estava ali porque às 19h haveria missa por alma da sua mulher falecida há quatro anos, os filhos estariam a chegar.Os olhos daquele homem compacto, vestido em contraste dramático, camisa branca, gravata preta de nó largo e bem feito, casaco cinza escuro e calças vincadas, amendoaram-se para exprimir uma saudade sem tamanho.
Estávamos os dois emocionados e o senhor atrapalhado ou surpreendido por aquele momento que a ambos tocou a alma afastou-se com a garrafa e o copo nas mãos.
Não há nada para desculpar, apenas para agradecer a beleza da partilha de um amor que nunca acaba.
Quando ele seguiu o seu caminho deixou-me a pensar na primeira expressão que ele usou para dizer que a mulher tinha morrido. Ele disse "perdi a minha mulher há quatro anos".
Não foi ela que o deixou, não foi ela que partiu, foi ele que a perdeu. A ação está nele e não no ente amado. Ele continua a procurá-la, ele continua a desejar encontrar a sua mulher. Há neste perder um desalento e uma responsabilidade... Será que ele se pergunta: Que poderia ter feito para não a perder? Não sei.
Fiquei a desejar que ele a encontre de alguma maneira, e que a saudade que sente há quatro anos possa ser cada dia mais leve para aqueles passos cansados que se arrastam em direção à igreja.
Talvez porque nos percamos de bom grado no amor, perder quem amamos é a dor mais profunda da todas. Talvez por isso muitos de nós, nunca se venham a perder e nunca venham a (re)conhecer pessoas extraordinárias como a mulher deste desconhecido que, sem saber, me tocou o coração e me fez acreditar no amor.