sexta-feira, 24 de abril de 2020

Mudanças...

A primeira vez que saí à rua depois de tantos meses fechada, era dia de festa. Pensava em como tantos sites de encontros e tantas redes sociais afinal nos afastavam das pessoas porque alimentavam uma idealização baseada em nós, uma fantasia egoísta vestida de pijama e alapada no sofá.
Conheci pessoas novas enquanto estava em isolamento sim, que me pediam para me detalhar, para me descrever e eu via naquelas respostas ou nas apresentações que as antecediam exercícios masturbatorios que apenas alimentavam o prazer próprio. No final a maior parte dos homens procuram mulheres de metro e oitenta, cabelo esticado, sem barriga e rabo firme e as mulheres nem sei bem o que procuram... Eu pelo menos nada tinha encontrado a não ser um óptimo pretexto para rir, escrever, recomendar filmes e livros :-)
As ruas estavam com gente, mas o movimento era diferente, os magotes eram mais largos, já não se viam sorrisos porque panos coloridos cobriam os rostos e ainda assim dava para perceber que as pessoas estavam alegres e que eu me tinha esquecido da máscara.
Vi-te ao longe e fiquei parada nessa imagem. Talvez porque a claridade fosse muita, ou porque o ar fosse demais para as minhas narinas, permaneci onde estava e contemplei o movimento de um mundo que agora me parecia estranho, de pessoas que me eram desconhecidas a não ser tu, querido Sérgio.
Esperei imóvel que a Fátima chegasse, não me distraí da espera como antes faria. Não te chamei aos gritos como me reconhecia. Afinal os meses de isolamento tinham-me mudado.
Reparava agora que, ou deixara de sobrepor tarefas, ou começara a ficar preguiçosa. Era cedo para avaliar os impactos em mim, um ser social que juntava na mesma festa ou na mesma mesa de café as pessoas mais diferentes e as histórias mais improváveis.
Hoje apenas esperava a Fátima e admirava a tua figura ao longe.
Quando ela chegou a alegria dissipou estes pensamentos e de repente todo o meu foco ficou naquela enfermeira magrinha e frágil que tinha à minha frente e se tinha mantido a trabalhar todos estes meses em que eu não tinha posto um pé na rua. Eu evitava o contágio ficando em casa, ela combatia o contágio olhando o invisível de frente. Eu lia romances que me falavam de amor e salvação e ela olhava nos olhos o sofrimento e o medo de quem vivia prognósticos reservados. Eu tinha comprado tudo pela internet e ela, porque não estava em casa, tinha de ir ao supermercado. Eu não mais tinha posto sapatos de salto alto ou sapatilhas da moda e ela mudava e lavava a roupa várias vezes ao dia. Como se todos os dias ela fosse à lua de escafandro. Era assim que eu a via, uma mulher que todos os dias navegava nos mares profundos ou subia ao mais alto dos céus. Um misto de Vinte Mil Léguas Submarinas e de Odisseia no Espaço em cinquenta quilos de gente e um sorriso vermelho.
Que bom poder estar ali.
Claro que ela estava mais habituada às coisas práticas que aos meus devaneios contemplativos e logo perguntou:
- O que comemos?
Entrámos no primeiro restaurante e olhámos em volta, era arejado, cheirava bem, mas algo nos impeliu a sair sem dizer uma palavra uma à outra. Talvez a quarentena de meses, vivida em campos opostos da batalha, nos tivesse dado poderes para não usar palavras, como se tivéssemos descoberto uma outra linguagem e nos entendêssemos com ela.
Decidimos descer a rua, sem planos, confiantes que o destino nos haveria de mostrar o sitio onde nos sentaríamos e poríamos a conversa em dia.
Parámos no cruzamento mesmo ao lado do quiosque dos jornais para avaliar a direção a tomar, foi nessa altura que ouço o meu nome, viro-me para trás e vejo-te a dois metros de mim. Sorrimos um ao outro de pura alegria e cumplicidade.
Foi uma fracção de segundos mas olhando-te via anos, à minha frente estava um homem. Aquele ser fininho, demasiado fibroso, demasiado compacto, tinha ganho corpo. E mesmo estando maior parecia-me infinitamente mais leve. O pescoço estava mais largo, a cara parecia maior. Os ossos tinham todos alargado e o corpo ganho formas mais redondas como os afloramentos graníticos nas serras que tanto amo.
Estavas diferente. Já não te levaria o vento, eras agora um homem de meia idade firme e tranquilo à minha frente.
Caminhámos um ao encontro do outro e eu abracei-te sem medo do que pensam as pessoas que cumprem o distanciamento social, abracei-te e confirmei que os meus braços já eram pequenos para ti e isso fez-me sorrir. Embora fossemos da mesma idade e eu bem mais baixa, sabes, quantas vezes me sentia maior que tu? Estava emocionada com aquilo em que te tornaras. Anos de amizade, anos de cartas trocadas e no final anos de cartas só recebidas por mim, anos de confidências e de partilha, anos de infelicidade e solidão parece que tinham finalmente chegado ao fim e agora eu sentia a emoção de abraçar o granito quente em dias de verão.
Quando nos olhámos nos olhos, tu disseste: 
- Lembras-te daquele projecto pro-bono que fiz para Angola? Houve um investidor que viu e convidou-me para replicar em todos os seus bancos. Estou a trabalhar nele há meses. Saí da caravana, arrendei uma casa pequena. Nunca tive tanto dinheiro Alice. Vou para Luanda amanhã.
Eu já não conseguia conter a emoção e a alegria que me saiam dos olhos. Tinha-me afastado porque tudo era escuro à tua volta, porque nada estava bem e por mais que eu fizesse ou tentasse a tua teimosia de ali ficar superava sempre a minha de te ver feliz. Também aos amigos de anos temos de dar a hipótese de voar, mesmo que os seus voos sejam em campos que não queremos para nós. A minha opção pela felicidade era vista por ti como um caminho naif e inconsciente neste mundo repleto de injustiça e gente má.
Vivíamos por opção em territórios opostos e nunca deixámos de ser amigos, mas também nunca pudemos partilhar plenamente o mesmo pic-nic.
Agora à minha frente o teu horizonte era grande, os teus olhos eram leves e eu via-te calmo e feliz. Finalmente alguém te paga o justo pelo grande trabalho que fazes, pelo grande artista que és e não te queixas por não seres amado como queres que te amem.
Deixei de ter fome e ainda assim, tal como faria antes da grande pandemia, disse-te olhando para ti e para a Fátima em alternância, vem comer connosco.
Descemos os três pela esquerda e foi nesse caminho que vocês se conheceram e que um bonito e inspirador amor começou. 
Afinal, no fundo no fundo, eu talvez não tenha mudado assim tanto depois de tantos meses de isolamento. 

Arte de guerrilha que me faz sair do casulo.

Dei dois mil quinhentos e oitenta e nove passos até me sentar num café com nome inglês e pedir um “croissant” com queijo e um abatanado chei...